A vida na Terra é extremamente rara e o planeta, também. Se há chance de haver vida em outros pontos do Cosmo, esses seres podem estar tão distantes que nunca faremos contato; e por mais que se busque um lugar como a Terra, menor é a chance de ser habitado pelo ser humano e mais difícil ainda haver condições que garantam o surgimento de vida.
Ciência não é uma escolha, é uma necessidade. Quem não enxerga isso está fadado a um obscurantismo que condena o futuro do país
Esta é a principal tese do “Biocentrismo”, nova forma de pensamento sobre a história da humanidade que o físico e astrônomo Marcelo Gleiser apresenta em seu novo livro “O Despertar do Universo Consciente – Um Manifesto para o Futuro da Humanidade” (Ed. Record), lançado este ano, no Brasil. O autor é professor de física na Universidade de Dartmouth (EUA), vencedor do Prêmio Templeton 2019 — considerado o Nobel do diálogo entre ciência e espiritualidade.
O biocentrismo seria uma capacidade ímpar de a humanidade colocar a vida como a primeira e mais importante regra moral a ser seguida globalmente, com um profundo respeito à diversidade narrativa sobre a história humana, suas representações e a consciência de que não estamos acima da natureza, como argumenta o autor ao longo da obra apresentando dados sobre física, astronomia, biologia, filosofia e, de certa forma, antropologia.
“Essa mudança vem lá de dentro, é uma mudança que tem que pegar no coração das pessoas, tem que pegar na carteira das pessoas, mais do que em ideologias de progresso infinito”, disse o físico, durante a palestra de lançamento do livro.
Reconhecido como um grande divulgador científico, Gleiser argumenta que, nos cerca de 300 mil anos de história da espécie humana, os Deuses habitavam a natureza, que começou a ser dessacralizada com a agricultura, há 10 mil anos, e as religiões monoteístas, que levaram Deus para longe da Terra e defenderam que a natureza existia para servir o homem.
Dos filósofos da teoria sobre os átomos (pré-socráticos) a Copérnico, que defendeu que a Terra não era o centro do Universo, houve o crescimento da razão e do saber científico que influenciou o Iluminismo. A ciência deu base para a Revolução Industrial, que gerou cidades superpovoadas dependentes de alimento, produzido em larga escala, e energia, proveniente de combustíveis fósseis; ao passo que a evolução do estudo da astronomia revelou que não só a Terra não é o centro do Universo, como a Via Láctea não é a única galáxia.
Um pulo misterioso
“O Iluminismo, aquela explosão de racionalidade que surgiu na Europa no século XVIII, veio do sucesso da Física, que a natureza não só era um objeto, como também era um objeto que seguia leis mecânicas precisas, a ideia da natureza ser um mecanismo de relógio. Então se você tem essa ordem no universo, a razão humana é capaz de entender essa ordem e esse é o único caminho para a verdade.
Essa é a centralidade da ideia do Iluminismo: que a razão humana, através do pensamento mecanicista, reducionista, pega as coisas grandes e quebra em pedaços pequenos para entender que é o único jeito de chegarmos na verdade. Que funciona para certas questões científicas mas não para as que envolvem a vida e a possibilidade de vida em outros mundos”, expõe o cientista.
Mesmo defendendo a importância da ciência na história da humanidade, Gleiser avalia que o avanço da astronomia reduz a importância da Terra diante do Universo, como se a vida pudesse facilmente existir em algum outro lugar parecido com este planeta, tese que ele critica ao mostrar que não só isso é raro, mesmo considerando trilhões de planetas e luas na Via Láctea, como é até hoje impossível conhecer as condições que levam a passagem de elementos inorgânicos à orgânicos, à vida.
“Esse pulo em que você vai da química inorgânica para o orgânico, para a bioquímica, você começa a formar aminoácidos, proteínas… o pulo disso para a primeira vida, é totalmente misterioso. A Terra não só é um lugar onde a vida surgiu, mas com as propriedades que mantêm a vida durante esse tempo todo.”
Vida rara
Com o crescimento da população, que passou de 2 bilhões no início do século 20 para 8 bilhões hoje, a pressão sobre o planeta cresceu demasiadamente, sem contar a poluição e destruição ambiental que estão levando à extinção de espécies e ao aquecimento global. Das tribos às cidades, houve um processo de colocar para fora o que se considera natureza, houve uma objetificação da natureza, a Terra perdeu o seu maravilhamento.
“A ideia é uma reconexão com o que eu chamo de coletividade da vida. Nós não somos os donos do planeta. Nós somos parte do planeta. E achar que a ciência, que certamente ajuda muito no desenvolvimento tecnológico, de tudo, vai resolver todos os problemas que a gente está causando com a industrialização, também não vai dar certo. Isso daí tem um nome, se chama triunfalismo científico”, ressalta o cientista.
Gleiser se posiciona contra a intenção de colonizar outros planetas, como Marte, não apenas porque o planeta é completamente hostil à vida, mas também que a emergência climática exige uma resposta urgente, que não pode esperar décadas.
“E se a gente fosse colonizar outro planeta, quantas pessoas iriam? Quem decide quem vai? Oito bilhões? Nunca. Talvez mil, quinhentas, cem mil? E o resto? Fica aqui. Então, esse elitismo é um absurdo. O foco da nossa vida é nesse planeta. Esse aqui é o ponto central.”
E, nesse processo, ele defende a pluralidade de visões sobre a Terra, defende ações individuais na busca de reduzir o consumo de água, energia e carne, pois acredita que grandes revoluções têm início em pequena escala, apesar da importância de políticas públicas. De modo geral, Gleiser defende a ressacralização da Terra por meio da ideia de que a vida é extremamente rara.
“Esse é o ponto principal que eu tento levantar no livro, que a gente tem que voltar ao que eu chamo de uma ressacralização da Terra. E que o ponto central da palavra religião é religar, é reconectar. Então, para nós, nesse momento histórico da nossa civilização, é religar com o quê?
É religar e reconectar com o passado evolucionário da nossa espécie que durante 300 mil anos mais ou menos estava profundamente conectado com a natureza até que a gente saiu e construiu essas coisas aqui fora, que são importantes, têm uma função, mas não tem nada de natureza. Tudo isso aqui está fora da natureza. As cidades botam a natureza para o lado de fora. Mas, pequenas transformações, jeitos de viver que juntos, somados, podem chegar a uma coisa muito maior do que a gente tem no momento. Não fazer nada, para mim, é um suicídio coletivo.”
A Terra de Gleiser
“Só o Elon Musk quer ir para Marte, que é um deserto gelado, com gravidade bem menor do que a da Terra, sem atmosfera e com muita radiação. Vênus é bonito de ver, mas é um inferno, literalmente, com temperatura de 500°C, muito ácido sulfúrico e cheiro de ovo podre. Observado daqui passa uma imagem poética. Mas a única poesia em nosso sistema solar é a visão e a existência do planeta TERRA, um oásis na escuridão do Cosmo, que fascina astronautas. Vivemos em um planeta azul no meio de um universo vazio, entre mundos mortos. A TERRA é o único ser vivo.
Isso me leva a um pensamento profundamente espiritual que nada tem a ver com religião, mas com a ideia de pertencimento, não só corporal, mas espiritual. Aqui percebo o mundo que permite nossa existência. Se o ar está ruim, se a água está ruim, se tudo estiver ruim, morreremos todos. Não dá para se pensar de forma individual, como o sujeito que tem água encanada, energia, gás, e por isso acha que está tudo certo, que está seguro. Não está.
Não podemos desconectar da natureza, somos completa e totalmente dependentes da natureza para sobreviver. Em vez de continuar devastando o lugar onde vivemos — que fazemos há centenas de anos, e na verdade, com muita eficiência nos últimos 300 anos — temos que criar uma reaproximação com o mundo natural, urgentemente.”
(Trecho de entrevista nas redes sociais).
(Fonte: www.sbfisica.org.br)
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