“Quando se ouve a palavra ‘autismo’, logo vem à mente a imagem de uma criança isolada em seu próprio mundo, contida numa bolha impenetrável, que brinca de forma estranha, balança o corpo para lá e para cá, alheia a tudo e a todos. Geralmente está associada a alguém ‘diferente’ de nós, que vive à margem da sociedade e tem uma vida extremamente limitada, em que nada faz sentido. Mas não é bem assim. Esse olhar nos parece estreito demais: quando nós falamos em autismo, estamos nos referindo a pessoas com habilidades absolutamente reveladoras, que calam fundo na nossa alma, e nos fazem refletir sobre quem de fato vive alienado.
O autismo é um transtorno global do desenvolvimento infantil que se manifesta antes dos 3 anos de idade e se prolonga por toda a vida. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), cerca de 70 milhões de pessoas no mundo são acometidas pelo transtorno, sendo que, em crianças, é mais comum que o câncer, a Aids e o diabetes. Caracteriza-se por um conjunto de sintomas que afeta as áreas da socialização, comunicação e do comportamento, e, dentre elas, a mais comprometida é a interação social.
No entanto, isso não significa dizer, em absoluto, que a pessoa com autismo não consiga e nem possa desempenhar seu papel social de forma bastante satisfatória. Ao contrário, pretendemos, neste livro**, não só esclarecer algumas dúvidas como também romper a visão obtusa e estigmatizada que a nossa sociedade ainda tem acerca desse mundo singular.
Compreender esse transtorno pode ser relativamente simples quando estamos dispostos a nos colocar no lugar do outro, a buscar a essência mais pura do ser humano e a resgatar a nobreza de realmente conviver com as diferenças. E talvez seja esse o maior dos nossos desafios: aceitar o diferente e ter a chance de aprender com ele.
Podemos fazer uma analogia entre o autismo e um jogo de quebra-cabeça. Se olharmos apenas para cada um dos sintomas envolvidos, incorremos no erro de avaliarmos, de maneira parcial, o conjunto que a obra representa. Mas, se tratarmos e cuidarmos corretamente desse indivíduo, o jogo é montado e podemos nos surpreender com o resultado obtido.
A tarefa de montar um quebra-cabeça pode não ser nada fácil para muitos de nós: buscamos peça a peça e tentamos encaixá-las, cuidadosamente, a fim de que pequenos fragmentos, que aparentemente não têm lógica, possam se transformar em uma bela paisagem. No entanto, o que pode ser difícil para alguns é extremamente prazeroso para muitos, inclusive para os próprios indivíduos com autismo, que, muitas vezes, desempenham essa tarefa com maestria. Isso porque o transtorno propicia uma visão extraordinária dos detalhes e, em muitas situações, esta característica se traduz em beleza, arte e talentos incontestáveis.
Devemos considerar que as primeiras descrições mais fidedignas do autismo surgiram na década de 1940, portanto, trata-se de um diagnóstico recente. Obviamente, o problema já existia antes disso, mas, em se tratando de ciência, é um tempo bastante curto. Por isso, ainda estamos em fase embrionária nas descobertas das causas e da cura do problema, embora muitos avanços tenham sido conquistados em termos de entendimento e tratamento eficaz.
O conhecimento atual sobre autismo é fruto de uma parceria que costuma dar certo: pesquisadores comprometidos e pais que dedicam suas vidas a zelar por seus filhos. No Brasil, os cuidados mais efetivos têm apenas três décadas de vida e se devem, principalmente, à coragem de algumas famílias de desbravarem fronteiras na luta pelo tratamento do autismo.
Felizmente, cada vez mais, grupos e associações em vários países ao redor do mundo se engajam e se esforçam, incessantemente, para buscar diagnóstico e tratamento adequados e, sobretudo, para exigir respeito, quebrar preconceitos, fazer com que as leis sejam cumpridas e que efetivamente haja inclusão escolar.
Foi pensando justamente na discriminação que a grande maioria das pessoas com esse funcionamento mental sofre que procuramos evitar o termo ‘autista’ como rótulo para essas pessoas. Não que a palavra esteja incorreta, porém, em nosso entendimento, ela tem sido amplamente usada de forma inadequada e pejorativa tanto em conversas descontraídas quanto nos diversos meios de comunicação ou até mesmo como jargão político. Isso só faz crescer o estigma do autismo, reduzindo o indivíduo, única e exclusivamente, a um transtorno ou ‘doença’ e abolindo de vez qualquer possibilidade de extrair a riqueza que há dentro dele.”
(*Trecho do livro – Mundo singular: Entenda o autismo | Autoria: *Dra. Ana Beatriz Barbosa Silva, Mayra Bonifacio Gaiato e Dr. Leandro Thadeu Reveles | Editora: Objetiva/Fontanar
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