Apesar de bastante debatido, o tema racismo muitas vezes é minimizado por parte da sociedade. No entanto, a luta ganhou ainda mais força devido a acontecimentos recentes que geraram repercussão internacional. O principal deles foi a morte do americano George Floyd, negro morto por asfixia por um policial branco. O fato ganhou o mundo e gerou uma onda de protestos antirracistas em diversos países, incluindo o Brasil, onde, pelo menos dois casos recentes chamaram a atenção: o primeiro foi o do menino João Pedro Mattos, de 14 anos, baleado com mais de 70 tiros de fuzil durante uma operação policial. O segundo, a morte do pequeno Miguel Otávio Santana da Silva, de 5 anos, que caiu do nono andar do prédio de luxo onde trabalhava sua mãe, Mirtes, empregada doméstica que, no momento do ocorrido, passeava com os cachorros da patroa, que teria sido negligente com o menino.
“Estão usurpando um direito que a população negra conquistou nas últimas décadas. Burlar o sistema de cotas é uma violência”
Luana Negralu, coordenadora do Coletivo Negro Lélia Gonzalez de Nova Friburgo
E uma denúncia a nível local promete esquentar ainda mais o debate em torno do racismo e, sobretudo, dos direitos da pessoa negra. De acordo com o Coletivo Negro Lélia Gonzalez de Nova Friburgo, através dos coordenadores Luana dos Santos (Negralu) e Felipe Bispo, pelo menos seis alunas do curso de Odontologia do campus Friburgo da Universidade Federal Fluminense (UFF), estão sendo acusadas de ingressarem irregularmente na universidade burlando o sistema de cotas destinado a negros, pardos e indígenas. A denúncia já foi encaminhada pelo grupo à reitoria da UFF e também será levada ao Ministério Público.
“Questão moral com o povo negro”
A denúncia, obtida com exclusividade por A VOZ DA SERRA, apresenta, inclusive, nomes, fotos e as informações referentes às seis estudantes que, supostamente, teriam burlado o sistema de cotas. Quatro delas ingressaram na universidade no segundo semestre de 2016 e outras duas no primeiro semestre de 2017. Como o caso ainda será apurado, o jornal decidiu não expor os nomes nem as fotos das alunas que são alvo da denúncia.
“É de extrema importância que essa denúncia seja apurada. Primeiro porque a política de cotas é uma ação afirmativa, que age como o começo de uma reparação histórica que o Brasil tem com o povo negro. Segundo, porque de acordo com dados recentes, o negro ocupa 50,6% das universidades federais. Mas em meio a tantos casos de fraudes, percebemos que não somos maioria no sistema universitário brasileiro”, afirmou Luana Negralu, coordenadora do Coletivo Negro Lélia Gonzalez de Nova Friburgo, que completou: “Lutamos para que essas pessoas desocupem essas vagas e deem espaço a quem realmente tem direito. Por isso, a apuração das denúncias e o afastamento desses alunos, é mais do que uma questão jurídica, é uma questão moral com o povo negro. Essas pessoas estão usurpando um direito que a população negra conquistou nas últimas décadas. Burlar o sistema de cotas é uma violência”, concluiu.
O Coletivo Negro Lélia Gonzalez de Nova Friburgo solicita à UFF a adoção de uma série de medidas, como a criação emergencial de uma comissão de combate às fraudes, com a participação dos coletivos de universitários negros da universidade; e a instauração de procedimento investigativo para apuração das possíveis fraudes. E se constatadas as irregularidades, requer o desligamento definitivo dos envolvidos dos respectivos cursos e que todos sejam também processados criminalmente pela prática, em tese, do delito de falsidade ideológica.
O que diz a lei
De acordo com a Lei de Cotas, universidades e institutos federais devem reservar 50% das vagas de graduação para os estudantes que cursaram integralmente o ensino médio em escolas públicas. Os critérios utilizados são os de renda e também raciais. Com relação a este último, a lei determina que as vagas existentes em cada instituição federal de ensino sejam preenchidas - por curso e turno - por autodeclarados pretos, pardos e indígenas e por pessoas com deficiência, devendo ser, no mínimo igual a proporção no Estado, levando em conta o último censo do IBGE.
A Lei de Cotas assegura a isonomia de oportunidades multiétnicas da sociedade com adoção de políticas públicas preventivas e repressivas, além do resgate histórico para a população negra e remanescentes quilombolas e povos indígenas. A obrigatoriedade de averiguar a autodeclaração está definida na portaria 13/2016 do Ministério do Planejamento. Além disso, a portaria 41/2016 do Conselho Nacional do Ministério Público determinou que as universidades criassem comissões para evitar fraudes e comprovassem as autodeclarações.
A validade da denúncia
Para melhor esclarecer sobre a validade da denúncia e as implicações aos envolvidos caso as fraudes sejam confirmadas, A VOZ DA SERRA ouviu a advogada Fátima Maria Francisca Machado da Silva, que é negra, sobre o assunto. Ela ressalta que no Brasil existe o ‘racismo de marca’, quando a discriminação é pelo fenótipo (aparência física) do indivíduo, como cabelo, cor de pele, nariz e lábios. Um racismo diferente do que ocorre nos Estados Unidos, quando o negro sofre preconceito pelo seu genótipo (ancestralidade), independente das características físicas.
Fátima Maria considera a denúncia válida sob o ponto de vista legal, sobretudo porque há jurisprudência, inclusive, para apuração de fatos anteriores a decisão do STF, de 2019, que instaurou a comissão de heteroidentificação. Ainda segundo a advogada Fátima Maria, se confirmadas as denúncias, os alunos envolvidos podem ter a matrícula cancelada e, no caso de quem já concluiu o curso mediante fraude, também pode haver a perda do diploma.
“Cabe lembrar que há situações em que não será mais possível a simples inclusão do autodeclarante indevido nas vagas de livre concorrência. E, também, que o prejuízo causado seja irreparável para aqueles que perderam as vagas que seriam suas e não poderão mais ocupá-las”, reforçou Fátima Maria Francisca Machado da Silva, que completou: “É sempre indicado o maior rigor possível na estipulação de critérios do edital e na apuração da obediência a eles das declarações, desta forma desestimulando a intenção de descumprimento das regras previstas enquanto as condutas exigirem e ainda forem necessárias as cotas, assegurada sempre a ampla defesa dos possíveis envolvidos”, finalizou.
UFF se manifesta
Procurada por A VOZ DA SERRA para comentar o caso, a UFF disse em nota que “defende irrestritamente o cumprimento da Lei de Cotas” e que “trabalha desde a 1ª edição do Sistema de Seleção Unificada (Sisu), em 2017, com uma comissão de verificação da Autodeclaração Étnico-Racial – Comissão de Heteroidentificação composta por professores, técnicos-administrativos e estudantes, na etapa denominada pré-matrícula presencial dos ingressantes nos cursos de graduação presencial”.
A nota informa ainda que “a apuração de fraudes de cotas étnico-raciais se dá pela criteriosa análise da comissão de heteroidentificação, a fim de verificar o enquadramento ou não no perfil de cotistas e abertura de processo de sindicância, no caso de estudantes que ingressaram antes da criação desta comissão. Toda denúncia é, portanto, rigorosamente apurada, assegurando-se o direito à ampla defesa aos discentes denunciados. Nos casos em que a fraude se comprova, após esgotadas todas as instâncias administrativas cabíveis, são tomadas as medidas previstas, que incluem cancelamento de matrícula e anulação de títulos e diplomas. A reitoria da UFF repudia com vigor fraudes em cotas étnico-raciais na universidade e reafirma a defesa das políticas de ações afirmativas como forma de reparação após anos de exclusão resultante da escravização e do racismo estrutural”.
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