Cachaça e cerveja

Duas paixões nacionais com laços longevos
sexta-feira, 13 de setembro de 2024
por Gabriel Ferreira Gurian
(Foto: Freepik)
(Foto: Freepik)
Em meados de 1827, no Rio de Janeiro, capital do Império do Brasil, a sociedade Vidal & C.ª anunciava a abertura de sua “fábrica de distillação”, na – hoje extinta – Praia Formosa, n. 67. Num anúncio veiculado no jornal Diario Mercantil, em 28 de julho, seus membros vinham “participar ao público que eles se incumbem de destilar e restilar todas as qualidades de aguardentes de qualquer grau e em qualquer porção que se queira […]”. 

Neste Mês da Cachaça, conheça o curioso caso do mais antigo registro de uma fábrica de cervejas no Brasil, nascida de uma destilaria urbana carioca produtora de aguardentes de cana
À primeira vista, pode parecer mais um estabelecimento em meio ao efervescente crescimento da principal cidade do Brasil independente. Mas aquele empreendimento guardaria algumas surpresas.

Poucos meses depois, outro anúncio, desta vez no Jornal do Commercio, informa que tipos de produtos a sociedade destilava: além de venderem “genebra”, isto é, o genever tipicamente neerlandês — produzido, ao que parece, pela própria Vidal & C.ª, que estocava e comercializava bagos de zimbro —, eles também ofereciam “rum e cana”, destilados do melaço e do sumo da cana-de-açúcar, além de açúcar refinado. 

Era, pois, além de loja de bebidas, uma destilaria calcada em subprodutos daquela icônica gramínea, com rótulos elogiados, inclusive, pelo público falante do inglês na capital carioca, cujos jornais, como o The Rio Herald, comparavam-nos positivamente ao rum jamaicano. 

O quadro societário da Vidal & C.ª não é explicitado nos periódicos, nesses jornais, que constituem a principal fonte de informações remanescente a documentar a “fábrica de distillação”. Ainda assim, é possível reconstruir a rede de indivíduos envolvidos com o empreendimento, de Pedro Vidal — francês ou português, não se sabe —, titular da firma, a Nicolas Masson e os irmãos Morange, sujeitos com seus próprios negócios,  de padaria e chácara voltada para a produção de hortaliças a serviço de encadernação e venda de livros. 

Essa constituição societária é importante pois aponta para duas questões interessantes: a primeira é o ampliado alcance que destilados nacionais vinham ganhando na primeira metade do século XIX, adentrando o espaço citadino, figurando como produtos de iniciativas manufatureiras e comerciais licenciadas, alcançando um público além de sua usual associação ao ambiente rural e a consumidores tidos como gente simples, de lavradores a escravizados; a segunda diz respeito ao envolvimento de figuras estrangeiras nesse negócio, gente cada vez mais presente nas paisagens urbanas brasileiras no decorrer dos 1800. Uma via de atuação interessante para quem aqui chegava, que, certamente, não carecia de público consumidor. Mas as surpresas da Vidal & C.ª não parariam por aí.

A firma permaneceu ativa até 1835, por cerca de 8 anos, portanto. E não se restringiu à destilação. Tendo mudado de endereço, a Vidal & C.ª ampliou o escopo de seus negócios e, num movimento até então sem precedentes, ao que tudo indica, foi a responsável pela mais antiga fábrica de cervejas de que se tem registro no Brasil independente, no Brasil enquanto nação. 

Em 15 de novembro de 1831, um anúncio no Correio Mercantil informa que “na fábrica de cerveja da rua d’Ajuda, n. 67”, endereço atrelado à sociedade, “vende-se, além dos gêneros pertencentes à dita fabricação e [à] destilaria, bagos de zimbro novamente chegados de Hamburgo e baunilha de primeira sorte, por preços cômodos”. 

Uma propaganda que não faz alarde nenhum quanto ao suposto pioneirismo da iniciativa, mas que, sim, é um marco na cronologia da produção cervejeira comercial no país e indicativo do espaço que começava a ganhar essa outra bebida, até então somente importada, no horizonte de consumo brasileiro.

Vidal e seus sócios produziram cerveja apregoada como “excelente e saudável”, feita com lúpulos germânicos, boa para o apetite e para a digestão. Um nicho no qual atuaram, progressivamente mais do que na destilação, até a dissolução da sociedade em 1835. Momento em que, aparentemente, uma enfermidade assolou e incapacitou um de seus membros, levando ao anúncio da venda de parte da fábrica em março daquele ano. 

No mês seguinte, divulgou-se o leilão de “todos os artigos pertencentes à fabricação de cerveja dos Srs. Vidal e C.” e a partida de seus integrantes para a Europa. Não faltariam, contudo, sucessores, em ambos os ofícios, nos anos seguintes.

Com histórias bem diferentes, por caminhos bastante distintos, as aguardentes e as cervejas alcançaram os nossos dias com suas respectivas bagagens valorativas. Apesar das óbvias diferenças, essas bebidas guardam vários pontos em comum, de reputações ainda cheias de estigmas, confrontados com movimentos recentes de valorização, chegando à sofisticação constante de suas produções, cada vez mais interessadas em mobilizar elementos brasileiros, dos insumos às madeiras de guarda. E, acima de tudo, são duas grandes paixões nacionais. Que, curiosamente, convergiram em uma destilaria carioca na primeira metade do século XIX…

Serviço

Documentos citados (disponíveis na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional):
  • Correio Mercantil (RJ), 27 de outubro de 1832; 28 de dezembro de 1832.
  • Diario Mercantil (RJ), 28 de julho de 1827.
  • Jornal do Commercio (RJ), 22 de outubro de 1827; 18 de março de 1835; 24 de abril de 1835.
  • The Rio Herald (RJ), 05 de abril de 1828.

*O autor é mestre e doutor em História e Cultura Social 

pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Unesp

(Fonte: mapadacachaca.com.br)

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