Olaria revive a saudade no centenário de Monsenhor Mielli

Missa, inauguração de memorial e nova placa celebram o religioso que mudou a vida do bairro mais populoso de Friburgo
quinta-feira, 28 de julho de 2022
por Adriana Oliveira (aoliveira@avozdaserra.com.br)
Comunhão na Igreja de Nossa Senhora das Graças (Arquivo AVS)
Comunhão na Igreja de Nossa Senhora das Graças (Arquivo AVS)

A comunidade do bairro Olaria está em festa - uma festa dominada pela saudade. Se estivesse vivo, Monsenhor Mielli faria 100 anos de idade neste sábado, 30. Para celebrar o centenário de nascimento da personalidade mais marcante e querida do bairro, uma missa será celebrada às 18h deste sábado na Igreja de Nossa Senhora das Graças. Antes, às 16h30, o Memorial Monsenhor Mielli, será inaugurado e aberto à visitação. Também será descerrada a nova placa na praça que desde 1998 leva seu nome.

Caetano Antônio Mielli era um jovem padre friburguense quando, antes dos 30 anos, tomou para si uma missão visionária e humanista: fundar em Olaria não apenas uma paróquia, mas um complexo social, religioso e educacional que oferecesse a milhares de famílias proletárias a chance de crescimento pessoal, profissional e espiritual. Assim foi construído, a partir dos anos 50, o Centro Social Nossa Senhora das Graças, integrado, além de uma igreja moderna, por uma escola que formou gerações de friburguenses.

Foi uma obra grandiosa para a época, projetada quase ao mesmo tempo que Brasília e, inicialmente, pelo mesmo arquiteto: Lucio Costa. O terreno foi doado em 1951, por César Guinle. O centro social transformaria para sempre o bairro mais populoso de Nova Friburgo, oferecendo aulas, cursos técnicos como contabilidade, formação de professores, serviços assistenciais e esportes. Alunos tornavam-se professores, fazendo a engrenagem girar.

Lucio Costa não pôde terminar o projeto da igreja devido à sua transferência para a construção de Brasília, delegando-o a outros arquitetos, sob a supervisão dos irmãos engenheiros Heródoto e Ariosto Bento de Mello, da construtora Sotec. A obra da igreja em concreto armado, em plena construção de Brasília, durou mais de 20 anos e representou um desafio extra para o jovem padre: além de “roubar” os projetistas, a mudança da capital federal trouxe a dificuldade da obtenção de cimento, que era totalmente consumido pelo Planalto Central. O empenho do religioso na obra de sua vida, edificada em fé e concreto, moveu doações, terrenos, cotas extras de cimento e fincou em Olaria um dos legados mais importantes da história de Nova Friburgo. 

Monsenhor Mielli morreu em 13 de março de 1979, aos 56 anos, vitimado por um infarto fulminante. Seu corpo está sepultado na igreja que ele ergueu. Seu velório varou a madrugada, com o povo em lágrimas se revezando do lado de dentro e de fora para dar o último adeus. A prefeitura decretou luto oficial e o comércio de Olaria funcionou à meia-porta em plena quarta-feira.

Curioso por novidades tecnológicas, Monsenhor Mielli tinha verdadeira paixão por hobbies de vanguarda na sua época, como o radioamadorismo. No dia de sua morte, após várias tentativas, recebeu a bênção, via rádio, do Papa Paulo VI.

Recordações de quem conviveu com ele

"Ele teria sido um idoso conectado, com internet, celular moderno, seguidor de todas as redes sociais, e ainda explorando todas as novidades do mundo tecnológico", conta Rita de Cássia Fernandes de Oliveira, a Dona Cassinha, de 93 anos, que trabalhou como secretária do Colégio N.S. das Graças e do próprio monsenhor por 27 anos, nas décadas de 60 a 80.

Dona Cassinha destaca também o dom da palavra que Monsenhor Mielli possuía como sacerdote, nas homilias e também como educador: "Generosidade, bondade e humildade nunca lhe faltaram. Do coração nem se fala: sempre acolhedor, especialmente aos mais necessitados. Ele fez muito pelo povo de Olaria. Foi aquela pessoa de bom senso, de amor e de unidade", define. 

Em reportagem publicada por A VOZ DA SERRA em 2020, o sobrinho Orlando Mielli Jr. lembrou, emocionado, uma das facetas mais marcantes do tio: o respeito ao diferente, à pluralidade de ideias. Nascido em família italiana e católica, Caetano Antonio, o Taninho, como era chamado em casa, tinha um avô, João Perna, kardecista com participação ativa na fundação do Lar Abrigo Amor a Jesus (Laje) e do Centro Espírita Friburguense.

Na enxurrada de 1973 que quase destruiu o Colégio N.S. das Graças, Monsenhor Mielli aceitou a valorosa ajuda de um protestante, o pastor Schlupp. E, antes de construir seu templo, o líder católico procurou o pastor Eliezer, da Igreja Batista de Olaria, para estabelecer o diálogo. “Vamos pregar o Evangelho, cada um à sua maneira”, teria dito.

Orlando destaca ainda o lado familiar do tio Taninho, muito carinhoso com a mãe, dona Antonieta, a quem visitava todos os dias: “O amor por ela era lindo de ver”. Depois da morte do filho, dona Antonieta, acamada, pedia para que colocassem o retrato de Taninho sempre do lado para o qual a virassem no leito, para que ela pudesse ficar olhando para ele.

Em casa, conta Orlando, o tio padre era aquele para o qual todos corriam nos momentos mais difíceis. E assim era Olaria, a sua grande, maior e numerosa família. “Ele foi um friburguense à frente do seu tempo e que fez muito pela cidade”, resume o sobrinho.

Conta Ariosto Bento de Mello em uma biografia do Monsenhor Mielli que Taninho, numa manhã de dezembro de 1933, então com 11 anos e sem conhecimento de ninguém, nem mesmo dos pais, resolveu procurar Dom José Pereira Alves, bispo de Niterói em visita ao Colégio Anchieta, para lhe dizer que tinha vontade de consagrar sua vida a Deus. Em casa, ele costumava brincar com os irmãos, devidamente paramentados, em torno de um altar improvisado.

O Memorial Monsenhor Mielli deve incluir as memórias de sua assistente Thereza de Jesus Fernandes, contadora das obras do Centro Social Nossa Senhora das Graças e sua assistente por quase 30 anos. Ex-funcionária da fábrica de rendas Arp, assim como sua irmã mais nova, Cassinha, Thereza foi a primeira secretária do escritório da Sotec e acompanhou de perto todas as obras. Ela e Cassinha perderam o pai também vítima de infarto  e com a mesma idade em que Monsenhor Mielli morreu: 56 anos. 

Na véspera de morrer, um Monsenhor Mielli bem disposto escreveu um texto, colhido por Thereza: “A vida tem seus momentos alegres e felizes, bem como momentos de dores e de sofrimentos. Em ambos devemos estar unidos ao Cristo. Ao Cristo glorioso do Tabor ou ao Cristo vítima no Calvário”. 

Natural da zona rural de Bom Jardim, onde trabalhava desde muito jovem na lavoura, Braz José Pinto mudou-se para Olaria e conseguiu emprego como operário na antiga Construtora  Spinelli. Foi durante as obras de construção da Igreja de Nossa Senhora das Graças que um também jovem Padre Mielli o conheceu e prestou atenção no seu senso de responsabilidade. Depois de uma temporada em Duas Barras, Braz voltou para Friburgo aos 43 anos, com cinco filhos pequenos. Passou então a trabalhar na manutenção do colégio, como zelador. No total, foram 40 anos de serviços prestados a Monsenhor Mielli, que, além de lhe oferecer emprego, matriculou, gratuitamente, todos os filhos de Braz na escola recém-fundada - inclusive a sexta, a única menina, que nasceu em Olaria.

Um dos cinco meninos, Roberto José Pinto, descobriu ali, junto à igreja do colégio onde estudava e o pai trabalhava, a vocação para o sacerdócio. Hoje administrador da Paróquia Nossa Senhora do Rosário, em Riograndina, Padre Roberto enviou à redação de  A VOZ DA SERRA  um comovente texto sobre Monsenhor Mielli, seu mentor e que tanto ajudou seu pai e milhares de outras famílias humildes e trabalhadoras. Braz faleceu em 4 de março  de 1999, aos 72 anos.

Profeta, pastor e sacerdote

"O centenário de nascimento de Monsenhor Caetano Antônio Mielli celebrado neste sábado, 30 de julho, nos oferece a ocasião para uma reflexão sobre muitos aspectos de sua personalidade e ação. Ele viveu e atuou em circunstâncias próprias de uma época. Teve traços de uma personalidade que era somente sua. No entanto, muito do que ele fez e ensinou continua significativo para os nossos tempos. Partilhando, por pura Graça de Deus, do mesmo sacerdócio de Cristo, do qual o nosso homenageado foi “antes de tudo e acima de tudo um padre exemplar, Homem de Deus, totalmente consagrado a seu serviço” (Dom Clemente Isnard), faço a seguinte pergunta: O que diria e o que faria Monsenhor Mielli, se vivesse e atuasse nos dias de hoje?

Certamente, como Homem de Deus, do seu povo e da Igreja de Cristo, ele estaria em comunhão afetiva e efetiva com o sucessor de São Pedro, o Papa Francisco, e acolheria, sem reservas, o seu apelo para sermos, sempre mais uma “Igreja Sinodal e em saída missionária para as periferias geográficas e existenciais”. E veria com grande esperança a renovação da vida da Igreja proposta pelo Papa Francisco, a partir das diretrizes do Concilio Vaticano II. Ele estaria sempre nos lembrando que a igreja é sempre uns “nós com Ele”, com o Senhor Jesus, reunida na Caridade, Dom do Espírito Santo. Monsenhor Mielli estaria em comunhão com a Igreja no Brasil, através da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e com o Bispo Diocesano de Nova Friburgo, Dom Luiz Antônio Lopes Ricci, ajudando a discernir sobre as atuais questões religiosas, políticas e sociais do nosso País, à luz do Evangelho e da Doutrina Social da Igreja.

Neste centenário do seu nascimento, brilha para todos que contemplam sua vida e missão, o quanto ele se “entregou, entregando a própria vida” (2Cor 12,15) em favor da Evangelização e Promoção Humana em nossa Diocese de Nova Friburgo. Assim, ao recordarmos seu testemunho de amor e abnegação, surge um verdadeiro sentimento de gratidão, que brota de uma confiante oração e de um belo programa de vida cristã e apostólica.

 Aqui, passados cem anos do seu nascimento, vemos que “o tempo corre veloz e a vida escapa das nossas mãos. Mas pode escapar como areia ou como semente” (Thomas Merton). Certamente, para Monsenhor Mielli, escapou como semente de qualidade na Evangelização, na edificação da Igreja de Cristo e na Promoção Humana, sobretudo na educação da Juventude e na valorização dos meios de comunicação. Vendo o seu legado, podemos repetir com Santo Inácio de Loyola: “O amor consiste mais em atitudes e atos do que em palavras”.

Ah, se Monsenhor Mielli estivesse vivo...Mas precisa ele estar vivo para que nos sintamos comprometidos com as mesmas causas? A tarefa de construir um mundo mais justo, fraterno e solidário, respeitoso da dignidade de cada pessoa humana, continua. E não abandonamos o sonho, a utopia de ver um mundo melhor, e bom para todos, unido em torno dos mesmos grandes ideais, justo e atento às necessidades dos mais carentes, aberto a receber as legítimas contribuições de todos os cidadãos. Segue o desafio permanente da Evangelização e Promoção Humana. Monsenhor Mielli, no seu centenário de nascimento, nos recorda que essas causas não são dele, mas de todos nós. Nesta época e diante das atuais circunstâncias, somos nós os protagonistas da construção de um mundo novo.

“Conhecer a Jesus é o melhor presente que qualquer pessoa pode receber; tê-lo encontrado foi o melhor que ocorreu em nossas vidas, e fazê-lo conhecido com nossa palavra e obras é nossa alegria” (Documento de Aparecida, n°29).

Como anotou com fidelidade e senso de oportunidade a sua fiel e generosa colaboradora Thereza de Jesus Fernandes, Dona Therezinha, estas foram as suas palavras em 12/03/1979, véspera da sua Páscoa definitiva: “A vida tem seus momentos alegres e felizes, bem como momentos de dores e sofrimentos. Em ambos devemos estar unidos a Cristo: ao Cristo Glorioso do Tabor ou ao Cristo Vítima do Calvário”.

A vocação e a missão do saudoso e inesquecível Padre Mielli foi ser o coração de Cristo juntos aos homens e ser o coração dos homens junto a Deus.

Acerca do nosso homenageado podemos parafrasear Santo Alberto Hurtado: “Minha Missa é minha vida e minha vida é uma missa prolongada”.

Repito aqui um belo testemunho de sua colaboradora Thereza de Jesus Fernandes: “Padre Mielli tinha uma grande Fé e amor a Deus. Dotado de profundo conhecimento religioso, muita devoção a Nossa Senhora, tinha muita cultura e o dom da palavra, quer nos sermões, nas palestras religiosas, como em recepções importantes ou inaugurações. Ele era sempre convidado por ser um grande orador. Falar de seus trabalhos e virtudes é impossível e, só Deus, em sua infinita misericórdia, pode gratificar sua alma por tudo o que ele fez neste mundo”. 

Termino esta breve homenagem àquele que me conferiu os Sacramentos de Iniciação à Vida Cristã, foi meu professor e diretor e muito contribuiu com minha família e de muitas outras.

 Mensagem ao Padre Mielli, de feliz e fecunda memória:

Um padre deve ser, ao mesmo tempo, pequeno e grande, de espírito nobre, como de sangue real, simples e espontâneo como um colono, um herói no domínio de si, um homem que lutou com Deus, uma fonte de santificação, um pecador que Deus perdoou, senhor de seus desejos, um servidor humilde para os tímidos e fracos, que não se rebaixa diante dos poderosos, mas se curva diante dos pobres, discípulos de seu Senhor, chefe de seu rebanho, um mendigo de mãos largamente abertas, um portador de inumeráveis dons, um homem no campo de batalha, uma mãe para confortar os doentes, com a sabedoria da idade e a confiança de um menino, voltado para o alto, os pés na terra, feito para alegria, experimentado no sofrimento, longe de toda inveja, que vê longe, que fala com franqueza, um inimigo da preguiça, sempre fiel, tão diferente de mim! (De um manuscrito medieval).

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