O processo de banalização de uma palavra ocorre por diversas formas: pelo seu uso excessivo, pela aplicação de um termo nem sempre correspondente à intenção ou ainda pela fusão de sentidos. Há, no entanto, um termo que se adensa progressivamente nos últimos meses. A saudade: um corpo que se faz presente nas ausências, nos silêncios que não se preenchem sozinhos.
Talvez por ser quase inevitável aos indivíduos ocidentais vivenciarem este sentimento, é de se supor que a saudade se manifeste, também, na Arte. Não são raras as canções, pinturas, coreografias ou poemas que buscam traduzir um estado tão subjetivo e abstrato.
A saudade é antiga, mas é em Portugal que ela se consolida como teoria. A pesquisadora de Literatura de Língua Portuguesa e poeta Gabriela Silva lembra que é possível identificar diferentes manifestações deste estado de espírito no país. Desde os tempos mais antigos da literatura portuguesa, ainda no trovadorismo, mas especialmente nas pós-navegações, no período camoniano. É nesta época em que se encontram representações da saudade com maior frequência.
Entretanto, é na ascensão da República portuguesa (1910-1926) que certo saudosismo toma maiores proporções. "Existe a falta dos tempos de Império, assim, a saudade acaba por ser consagrada como característica indissociável da cultura portuguesa", comenta.
Gabriela destaca nomes que levaram para a sua escrita a saudade: Florbela Espanca (1894-1930) fala da saudade do amado, de tempos de sonho e do Alentejo; Fernando Pessoa parte de um saudosismo que se transforma e reflete o desejo de um futuro de liberdade; ainda, Miguel Torga (1907-1995), Sophia de Mello Breyner (1919-2004), Lídia Jorge (1946-), Valter Hugo Mãe (1971-), entre tantos outros.
Talvez a saudade verde e amarela, cogita Gabriela, seja a de um Brasil que poderia ter crescido e se tornado uma grande nação. A poeta reflete existência de um tempo que, hoje, pode se enquadrar como saudade - entre o final do século XX e o início do século XXI - em que tudo era promissor. "A saudade nos compõe também na arte, na música, na literatura, mas somos mais famintos de futuro".
Instantes fotográficos
O gesto de manusear álbuns de fotografia pode conduzir a uma viagem, na qual o passado é visto da janela, sem chance de desembarque. Nas imagens, filhos ainda pequenos tomam banho de mangueira em um longínquo verão; amigos de infância cantam Parabéns, portando sobre a cabeça um cone de papel preso por um fino elástico; o sorriso de parentes que morreram ou se afastaram. Um flagra desajeitado na cozinha. Enfim, instantes.
Irene Santos é fotógrafa. Trabalha no ramo há cerca de 40 anos, registrando as áreas de artes cênicas, música, além de se dedicar à pesquisa da história e cultura afro-brasileira. Ela costuma visitar álbuns de fotografia, principalmente os produzidos no século passado. Acredita que sem o imediatismo dos dias de hoje prezavam-se mais os registros de acontecimentos da vida.
E foi olhando os álbuns de uma amiga - uma mulher negra como Irene - que notou o quanto eram parecidos os registros de suas famílias. Ela teve, então, a ideia de pesquisar a respeito. Como resultado desta investigação, Irene editou o seu primeiro livro de memórias fotográficas: Negro em Preto e Branco - história fotográfica da população negra de Porto Alegre (edição do autor, Fumproarte, 2005).
A saudade pode ser captada ou nasce depois? Irene diz até ser possível compor uma imagem em um ambiente nostálgico, onde certo personagem adote uma postura corporal que possa sugerir a falta de algo. "Mas isso tudo não passará de suposição do sujeito que olha a cena", observa.
*Priscila Pasko é jornalista e escritora, autora do livro de contos Como se mata uma ilha (Editora Zouk, 2019). Leia a íntegra desse texto no site www.jornaldocomercio.com.
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