O olhar do habitante, aquele que circula apressado pelas ruas, muitas vezes deixa passar desapercebido valores importantes da paisagem urbana. A necessidade de desenvolver atividades com uma “velocidade” cada vez maior, faz com que deixemos de perceber as coisas que tem valor fundamental, e, por consequência, provoca uma perda na relação que se estabelece com o meio em que se vive.
Em tom de parábola, Norton Juster se refere, em um conto, a este fenômeno: “Há muitos anos, neste mesmo lugar, havia uma linda cidade, cheia de casas bonitas e lugares atraentes... As ruas eram cheias de coisas maravilhosas para se olhar e as pessoas sempre paravam para olhar para elas. - Elas não tinham nenhum lugar para ir?, pergunta Milo. - Claro que sim, mas, como você sabe, a razão mais importante de se ir de um lugar para outro é ver aquilo que há entre os dois lugares... - Aí, um dia, alguém descobriu que, se você não olhasse para nada e tomasse atalhos, você chegaria mais depressa. As pessoas tornaram-se obcecadas para chegar lá, correndo, depressa, olhando para o chão.
E, porque ninguém mais olhava para as coisas à sua volta, tudo foi ficando cada vez mais feio e mais sujo e, como tudo foi ficando sujo e feio, as pessoas andavam cada vez mais depressa, e então uma coisa muito estranha começou a acontecer. A cidade começou a desaparecer. Dia a dia, as construções iam sumindo e as ruas desaparecendo. E as pessoas continuavam vivendo ali como sempre, nas casas, em prédios e nas ruas, que já não estavam mais ali, porque ninguém notava nada”.
Assim como acontece na ficção, também as pessoas que habitam a cidade podem perder o contato com a cidade na qual habitam. Na verdade, a cidade não deixa de existir, ela continua ali, mas a maneira pela qual as pessoas passam a se relacionar com ela é que vem sendo alterada. O próprio olhar é alterado. James Hillman diz que a qualidade de vida depende do direcionamento da atenção para algo que restaure a qualidade das imagens que percebemos ou não no meio urbano. A capacidade de formar uma noção verdadeira das coisas, ou da cidade, depende de uma observação mais atenta e uma resposta estética.
Segundo ele isto está diretamente relacionado com um ato básico que foi esquecido: o caminhar, que foi trocado pela locomoção mecanizada. Ele define o ponto de vista de que este ato de caminhar deva ser retomado para uma melhor relação entre o habitante e a cidade.
Uma onda de imagens
A mudança na relação entre habitante e cidade está diretamente relacionada com as transformações que caracterizaram a modernidade urbana. A utilização no quotidiano das mais importantes invenções surgidas a partir do século XIX, como o telefone, o automóvel, o avião, o cinema, representou uma profunda modificação no comportamento humano e, por consequência, um fator de transformação importante neste processo, que poderia ser classificado como o de uma “economia geral” da imagem do meio.
O homem da cidade passou a ser um homem submerso em uma onda de imagens, em uma nova paisagem, altamente desenvolvida, diferenciada e dinâmica, na qual tem lugar a experiência moderna e que será identificada como uma peculiaridade deste novo tempo. Muitas das questões atuais sobre as relações entre sujeito e espaço urbano, que consideram a percepção a partir da influência da máquina, da simultaneidade e da multiplicidade de imagens, relacionadas com o processo artístico, já estavam sendo anunciadas por pensadores desde o século XIX como características da vida moderna.
Baudelaire [Charles, poeta francês] foi um desses primeiros pensadores que demonstrou, através de uma percepção instintiva, essas alterações que passaram a caracterizar a vida moderna. Numa crítica ao Salão de 1845, ele já dizia: “ninguém está prestando atenção ao vento que há de soprar amanhã, e todavia o heroísmo da vida moderna nos rodeia e nos pressiona…”
(*Daniela Mendes Cidade é arquiteta e urbanista, mestre e pesquisadora nos cursos de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Caxias do Sul e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul).
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