Polêmica e perplexidade: consulta pública discute algo que já estava decidido por lei

Há 7 meses Câmara aprovou e prefeito sancionou projeto para criar complexo cultural no Suspiro; segundo advogado, destinação não pode ser alterada
quinta-feira, 28 de julho de 2022
por Adriana Oliveira (aoliveira@avozdaserra.com.br)
O terreno anexo à Praça do Suspiro (Foto: Henrique Pinheiro)
O terreno anexo à Praça do Suspiro (Foto: Henrique Pinheiro)

Muito além de causar celeuma na cidade, a mudança de rumo do governo Johnny Maycon, resolvendo abrir consulta pública para discutir a destinação de um espaço que já estava decidida por lei sancionada por ele mesmo, provocou perplexidade nos meios culturais, políticos e até jurídicos de Nova Friburgo.

Em discussões acaloradas nas redes sociais, leitores não entendem como o projeto de um moderno complexo multifuncional, incluindo biblioteca física e digital e espaços para shows, palestras, cineteatro, boulevard e lojas, pode vir a ser substituído por uma “Praça da Cerveja”  ou por mais um espaço de eventos com shows barulhentos, conforme a vontade popular.

Outros preferem “eventos”, muitas vezes esquecendo que o projeto original já prevê um boulevard para shows reunindo até 12 mil pessoas (abaixo). Não faltou quem interpretasse nessa guinada um estilo de política “Pão e Circo” (quando, no Império Romano, o povo era incentivado a se distrair com comida e diversão, durante as lutas de gladiadores).

A proposta de instalação da Fundação Biblioteca Internacional Machado de Assis (Bima) no terreno anexo à Praça do Suspiro já está aprovada pela Câmara Municipal há sete meses, com o voto de todos os vereadores, e tem até provisão de recursos do Legislativo estadual - um compromisso do próprio presidente da Alerj, André Ceciliano, em visita a Friburgo, em junho.

Com o projeto aprovado na Câmara no fim de 2021, faltava agora à prefeitura apenas dar a largada na captação de recursos para a execução da obra, incluindo, além dos R$ 6 milhões da Alerj,  receitas federais através da Lei Rouanet e do Fundo Nacional de Cultura.

Insegurança jurídica

Segundo advogados ouvidos por A VOZ DA SERRA, a consulta popular cria insegurança jurídica. Isto porque a Lei Municipal 4.857, aprovada por unanimidade em 14 de dezembro passado, sancionada e promulgada pelo prefeito Johnny Maycon em 23 de dezembro e publicada em Diário Oficial em 17 de janeiro, autoriza a prefeitura a criar a Fundação Bima exatamente naquele local.

No artigo 22, a lei não deixa dúvidas sobre o endereço de instalação do futuro complexo multicultural: “O imóvel identificado sob o nº 000000763, conforme ficha patrimonial do município, localizado à Rua General Osório, com área de 2.197,85 m², será integralizado à Fundação Bima no ato de constituição da pessoa jurídica, devendo os atos referentes ao registro imobiliário serem realizados a partir da publicação desta lei”.

O parágrafo seguinte da lei deixa ainda mais claro: o terreno “deverá ser utilizado exclusivamente para construção e abrigamento da Biblioteca Internacional Machado de Assis, caso contrário deverá ser reincorporado ao patrimônio do município”.

O advogado André Furtado explicou que a norma legal destinou o terreno  à utilização da biblioteca. “A isto atribui-se o termo afetação, que é a qualidade de destinação de um bem público. Neste caso específico, o bem é de uso especial externo, o que significa dizer que será utilizado por agentes públicos e usuários do serviço respectivo”.

Tecnicamente, segundo ele, diz-se que o bem recebeu uma destinação específica para utilização, fato que cria a vinculação do respectivo imóvel. “A administração pública, embora possua sua discricionariedade, está restrita à legalidade. Ou seja, somente lhe cabe aquilo que está autorizado por lei. E, neste caso, o que se tem é um quadro onde a Câmara Municipal de Nova Friburgo votou e aprovou uma lei para a criação de uma biblioteca que funcionará no terreno a ela destinado”, avalia Furtado.

 Ele observa ainda que a afetação pode muitas vezes ser anterior à construção do equipamento público, mas nem por isso o administrador poderá mudar sua destinação à própria vontade: deverá observar a lei própria.

 “O fato de ainda não haver a construção – ou seu início – no terreno mencionado não significa que a gestão pública possa tratá-lo como bem público dominical (não afetado), mas, ao contrário, deverá observar a lei em vigor. Basta a afetação – e isto foi concretizado pela lei – para que este bem esteja em regime protetivo e caracterizado como de uso especial (e externo). Portanto, tentar mudar a destinação de um bem público já afetado é um ato juridicamente equivocado”, explicou.

Consulta relâmpago

Causou estranheza também a consulta popular relâmpago - apenas uma semana de duração, até a próxima terça, 2 de agosto - em pleno período de férias escolares, o que dificulta a participação de alunos, professores e demais entes ligados à cultura e à educação. 

Oficialmente, a prefeitura alega ser a consulta “uma forma democrática e inclusiva, de caráter inteiramente consultivo, com o objetivo de reunir opiniões e resguardar o interesse público”. Mas o fato é que o projeto da Bima - idealizado pelo atual secretário municipal da Casa Civil, Pierre Moraes, desde quando era colega de Johnny Maycon na Câmara - já vem sendo discutido há anos. O  terreno foi desapropriado pelo município em 2019, ainda na gestão Renato Bravo, por R$ 5,8 milhões, “para instalação de equipamentos urbanos, de utilidade e interesse público”.

Resultado só no final

A prefeitura não quis informar os resultados parciais da consulta, que começou na última terça, 26 - por sinal, no mesmo dia em que foi anunciada. O resultado só será divulgado no final. A participação pela internet se dá através do site www.novafriburgo.rj.gov.br. As opções para o uso do terreno são três, além de uma quarta possibilidade, reservada para o envio por escrito de sugestões.

Entre as opções elencadas pela prefeitura, a primeira é a instalação da Bima. A segunda alternativa é a construção de um Beer Garden, ou Praça da Cerveja, cujo projeto pretende criar um ponto de convergência para o turismo cervejeiro e a cultura dos povos colonizadores de Friburgo, por meio de quiosques padronizados, um memorial da produção cervejeira na região, espaço para shows e uma fonte. O terceiro projeto visa a destinar o terreno para a realização de eventos e apresentações artísticas e culturais como o recente “O Amor sobe a Serra”, realizado em junho por ocasião do Dia dos Namorados, e o Festival de Inverno que acabou de acontecer, reunindo DJs, bandas locais, concertos e artistas de peso como Detonautas (acima, foto no perfil oficial do prefeito).

Vereador defende Praça da Cerveja

Um dos maiores defensores hoje da Praça da Cerveja é o vereador Max Bill, que, curiosamente, em dezembro,  votou “sim” à instalação da Bima no Suspiro. Em redes sociais, ele postou nestes dois últimos dias: “Este projeto é um dos sonhos de campanha! Eu e meu gabinete apresentamos esta ideia para a prefeitura e hoje seguimos construindo juntos a criação desse espaço, sendo ele também um dos maiores potenciais que sempre vi para Nova Friburgo. Cadê a galera da cerveja?”, escreveu ele num post curtido (e depois descurtido) pelo próprio perfil oficial do prefeito Johnny Maycon (abaixo). 

“Turismo forte! O Brasil é o 3º país no mundo que mais consome cerveja, sendo Nova Friburgo um dos maiores produtores de cerveja artesanal no âmbito nacional. Um projeto desse não tem como dar errado, só cerveja. Friburgo é um polo cervejeiro e precisamos fortalecer essa essência! Já votou no nosso projeto? O link está na bio. Ele está na Opção B”, voltou a postar Bill nesta quinta.

Policial civil e empreendedor do ramo cervejeiro, Max Bill Ratamero elegeu-se em 2020 tendo entre suas bandeiras a volta da Festa da Cerveja e a criação de um Espaço da Cerveja, com o intuito de atrair turistas de todo o país.  Em 2019,  foi um dos organizadores do Brewstorm Festival, no Espaço Natureza, junto à antiga Fábrica Ypu, reunindo 20 marcas de cerveja de produção local, além de três bandas de música, com ingressos a R$ 40.

O projeto da Bima

Apesar de o nome “biblioteca” remeter ao passado, o projeto da Bima, muito mais que um museu, prevê um moderno complexo multicultural e multifuncional, semelhante ao Museu do Amanhã, no Rio. Menina-dos-olhos do secretário da Casa Civil de Johnny Maycon, Pierre Moraes,  a primeira smart physical library do mundo terá alcance internacional e contará com livros físicos e digitais, além de vários recursos tecnológicos. Terá ainda espaços para e-games, seminários e exposições de todas as linguagens artísticas, bem como shows e eventos para até 12 mil pessoas.

"A Bima será uma renascença para Nova Friburgo e a região, que desde 2011 vem sentindo impactos econômicos negativos, principalmente devido à grande tragédia climática e, atualmente, à pandemia. A Bima vai trazer turistas, impulsionar a economia e colocar Nova Friburgo em evidência mundialmente", destacou Pierre no encontro com Ceciliano em 6 de junho, quando o deputado estadual anunciou para o projeto o repasse de R$ 6 milhões economizados pela Alerj,  durante o evento "Café com Desenvolvimento", na Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL). O repasse, segundo o presidente da Alerj,  será por meio de convênio entre a Prefeitura de Nova Friburgo e a Fundação Anita Mantuano de Artes do Estado do Rio (Funarj). O aporte financeiro será para a cooperação técnica internacional e para realização do projeto básico e executivo da obra.

O projeto homenageará artistas e escritores que nasceram ou tiveram momentos marcantes em Nova Friburgo, como Guignard, Carlos Drummond de Andrade, Rui Barbosa, Machado de Assis, Joaquim Nabuco, Villa-Lobos, Lygia Pape, Casimiro de Abreu e Benito di Paula. A Bima também contará com um calendário anual em homenagem às dez colônias de Friburgo. O ousado traço arquitetônico inclui  espaços como auditório com 70 lugares para aulas e palestras e eventos de e-games,  atraindo jovens para o ambiente literário; um cineteatro com cem lugares para apresentações musicais, teatrais e audiovisuais; lojas; acervos de livros físicos e digitais; piso em LED alternando trechos literários nos mais variados idiomas; e praça de alimentação.

O projeto prevê ainda a supressão da rua que atualmente contorna a Praça do Suspiro, dando origem a um grande boulevard com capacidade para 12 mil pessoas. A necessidade de vagas de estacionamento será suprida com a construção de um edifício-garagem  próximo, cuja receita será parcialmente direcionada ao fundo que reunirá os recursos necessários à manutenção da Bima.

 

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TAGS: obra | Governo