O Natal de minha infância

Crônica de Arnaldo Miranda
quinta-feira, 23 de dezembro de 2021
por Por Arnaldo Miranda
O Natal de minha infância

Por esses dias, acossado por lembranças remotas de infância ― por volta de 1966 — interrogava-me acerca do incrível grau de civilidade dos meus pais. Um modesto casal de classe média baixa (ela cabeleireira, ele alfaiate; ela friburguense, ele paulista) que tinha a delicadeza de preparar-nos com esmero uma bela ceia, à sala de dentro de nossa casa à rua Sete, antes que saíssemos para a missa do Galo, na Catedral. 

Caçula e temporão, isto é, duas vezes mimado e paparicado, impressionava-me a basta mesa de frios e frutas que só víamos durante o período ― nozes, castanhas cozidas, passas ― afora que eles dois inovavam na árvore de Natal, à sala da frente, recheando-a de bombons Sonho de Valsa, em meio a bolas coloridas, pingentes e algodões, que surrupiávamos de passagem a partir do dia 8 de dezembro quando era montada. Pelas paredes das salas, estendiam, com a nossa modesta e animada ajuda, cordões que imitavam ciprestes e enfeites a que meu pai chamava de “florões”, feitos de papel laminado, em cores diversas e formato de estrela. Era um encanto para mim, o Natal de minha infância. 

Naturalmente que ao sairmos para a missa, papai esquecia-se sempre de algo, o lenço, mormente o lenço. Podem ir andando que eu pego vocês, dizia. E lá seguíamos nós, minha prima Solange, minha irmã de criação Tetê e eu aninhados em torno de mamãe ― elas de braços dados, eu arrastado pela mão ― que nos conduzia com disciplina e alegria pelas ruas pouco iluminadas de uma cidade pacata e tranquila. Meus irmãos mais velhos, a essa altura, já se haviam desgarrado das asas protetoras de dona Lília e estavam não sei aonde àquela hora. Provavelmente pelos bares, em confraternizações que esticavam-se até a meia-noite ou em visita à casa das namoradas. 

O fato é que, ao retornarmos da Catedral, meus dois irmãos, já recolhidos à casa para a ceia natalina, acusavam, não sem grande galhofa e camaradagem, a passagem há pouco de um velhinho de barbas longas e brancas (como as que ostento hoje) e roupas vermelhas que ― Oh? ― deixara um presente para mim! Sério?! Sim, respondia o meu pai, provavelmente com uma piscadela cúmplice entre os três que não logrei nunca captar. Corria à janela da sala de dentro, investigava o céu, as estrelas ― quando havia estrelas, que o Natal friburguense é dado a chuvas e trovoadas ―, vasculhava os quartos, descia ao quintal, olhava de fora o escuro do porão e depois de não achar o bom velhinho, em lugar nenhum, voltava ao presente em si, até ser conduzido, às vezes com gentileza enérgica, ao meu lugar na mesa da ceia, já então completada pela presença de frangos e cabritos tostados, mais a farofa, o arroz e os pastéis de forno, uma especialidade em que minha mãe e suas duas ajudantes simplesmente tocavam o zênite. Eram quase sublimes aqueles pastéis! E um tinto, claro, servido com moderação e sorrisos por meu pai. 

Havia anos em que as encomendas de ternos levavam o velho a prolongados serões. E, nos dias que antecediam às comemorações do nascimento do menino Jesus, adquiriam sacas e mais sacas de mantimentos diversos ― arroz, feijão, milho, farinha ―, atulhavam com elas a sala de dentro, já devidamente decorada com seus enormes florões pelas paredes, e distribuíam alimentos a outras tantas famílias que formavam espichadas filas à calçada em frente de casa... 

Como não ver civilidade transbordante em tudo isso, partindo de um casal de vida modesta e de pouca instrução formal como era o caso de ambos? Ela mal tinha o primário, ele mal tinha o ginásio. De onde lhes vinha a sabedoria, a delicadeza, a generosidade, a solidariedade que sabiam ajuntar aos ritos sagrados da comensalidade que, em nossa casa, sempre gozou de um lugar alto? Penso que vinha do povo brasileiro, sua cultura agrária e gregária, sua compreensão da família como fonte de união e integridade, sua religiosidade suave, pouco ostensiva, porém firme e presente. Por óbvio que rolava um Pai Nosso à mesa da ceia e um agradecimento a Deus por nosso farto alimento. 

São lembranças de um tempo em que uma família pobre ― pobre com casa própria no centro da cidade, veja bem de que tipo de pobreza estamos falando à época ― gozava de grande amor-próprio e um olhar para a vida repleto de generosidade e esperança. Um privilégio que não era só meu, garanto, mas de muitos outros meninos e meninas pobres do morro dos Cabritos, do Cordoeira, do Bairro Ypu, de Conselheiro Paulino, da Ponte da Saudade e de tantos rincões do meu torrão natal, cujos Natais não eram acossados por fuzis no morro da Pedra ou a necessidade imperiosa de se acender a luz no interior dos carros quando adentramos, à noite, certos lugares inóspitos da atualidade. 

 

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TAGS: Natal