Mãe solo e carreira: uma equação que não fecha

O mundo do trabalho é desenhado por homens, para homens, sobre homens e as mulheres foram se encaixando nesse universo sem terem as suas necessidades contempladas
quinta-feira, 07 de março de 2024
por Jornal A Voz da Serra
(Foto: Freepik)
(Foto: Freepik)

São mais de 11 milhões de mães solo no Brasil, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Ser mãe solo é ser responsável por cuidar dos filhos, além de ter que conciliar trabalho e a garantia da parte financeira da família. Se essa realidade já era difícil antes, com a pandemia piorou, e muito.

Filhos assistindo as aulas em casa, desemprego, tripla jornada são alguns dos problemas enfrentados por essas mulheres que, no Brasil, ainda são invisibilizadas na formulação de políticas públicas.

A professora da rede municipal de ensino, Ana Paula da Cruz, é mãe solo de dois filhos: um de 15 anos e outro de 8, este adotado porque sua irmã faleceu após o parto. Ana trabalha o dia inteiro e se divide entre as responsabilidades da casa, profissão e filhos.

“Sou mãe e pai deles. Sou a única provedora de ambos, os pais não participam financeiramente nem presencialmente. Não é nada fácil. Isso piorou muito com a crise da pandemia, tanto economicamente, como para dar conta das demandas deles misturadas às da minha profissão”, relata a professora.

“Faço malabarismo financeiro e ainda enfrento o machismo da sociedade. Eu gostaria de proporcionar muito mais para eles, mas não consigo”, desabafa.

De lá para cá, pouco, ou nada mudou. Ainda há um longo caminho a percorrer, principalmente no que diz respeito a “mães solo e carreiras”. Vejamos, a seguir.

Desemprego

Outro agravante que já existia no universo das mães solo trabalhadoras é o desemprego, seja por terem que ficar com os filhos, seja por preconceito do mundo do trabalho. Pelos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, do IBGE, no terceiro trimestre de 2020, 8,5 milhões de mulheres tinham deixado o mercado de trabalho em comparação ao mesmo período anterior. À época, mais da metade da população feminina com 14 anos ou mais estava fora do mercado de trabalho.

“Temos mais de 6 milhões de crianças sem o nome do pai no registro e isso já indica um número alto de mães solo. Mas existem aquelas mães que têm os filhos registrados, os nomes dos pais na certidão, mas não têm contato com o pai. Há os casos das mulheres que estão casadas com seus companheiros e ainda assim são as únicas responsáveis pela tarefa, vista ainda como uma obrigação da mulher”, explica Maíra Liguori, diretora da Think Olga — ONG que atua junto à sociedade civil para sensibilizar a população sobre questões de gênero e suas intersecções.

Sabendo que mulheres estão em desvantagem na equação “mães solo e carreira” e que mesmo com a forte articulação dos movimentos feministas para que os direitos políticos, econômicos e sociais sejam garantidos, a construção de uma rede de apoio segura é imprescindível. Mães saudáveis e que estejam bem, fisicamente e emocionalmente, podem auxiliar outras companheiras na busca por oportunidades mais equânimes no mercado de trabalho. 

A grande realidade no ponto de vista da diretora é de mães que se apóiam em outras mães, terceirizando os cuidados para poderem exercer a sua profissão e botar comida na mesa. Essa é uma situação complexa, estrutural e sistemática que nem poder público e nem o setor privado se dispõem a debater e encarar. Maíra acredita que gestões empresariais precisam ser compreensivas e sensíveis às questões de gênero e maternidade. 

“Quem cuida das crianças, na maioria dos casos, são mulheres. Isso é uma desconstrução que precisa ser feita com a máxima seriedade e urgência por todos os setores da sociedade. É preciso trazer soluções, incluindo os homens na conversa, e pressionar o poder público a assumir o seu papel, oferecendo a criação de leis e políticas de assistência adequadas em termos de saúde e educação para as crianças e para todas as pessoas. Temos mães negras trabalhadoras informais que estão dentro das casas cuidando das filhas de outras mulheres que estão trabalhando e que, muitas vezes, deixam seus próprios filhos aos cuidados de pessoas não confiáveis ou expostas a situações de vulnerabilidade. Essa questão demanda debate e ações urgentes”, ressalta a diretora.

A carreira na encruzilhada, e a sensação de "equilibrar pratos"

Quando uma mãe precisa exercer a sua profissão, a regra básica experienciada pela maioria das mulheres é a sensação de “equilibrar pratos”. Tal demanda exaustiva e infinita pode ser associada  imageticamente ao gênero de sci-fi: se nele podemos criar uma figura feminina com vários braços, olhos e pernas — algo próximo das deusas hindus que possuem diversos membros para simbolizar suas distintas qualidades —, nos plurais perfis de mães da vida real desdobrar-se em duas, ou mais, implica em dar conta de fazer o almoço enquanto amamenta, responde uma mensagem no celular e fica de olho nos outros filhos, tudo ao mesmo tempo. Esta realidade se acentua ainda mais quando falamos das mães solo. 

Longe de ser roteiro fictício ou mesmo narrativa romantizada, as mães solo (mulheres que são as únicas ou principais responsáveis pela criança) são, de acordo com o IBGE (nunca é demais repetir), mais de 11 milhões no país. 

Relembrando a sabedoria africana de que “é preciso uma aldeia inteira para educar uma criança”, é necessário também um vilarejo disposto a abraçar estas mulheres para que elas tenham o direito de ascender profissionalmente, com apoio, dignidade e respeito, após se tornarem mães. 

A pedagoga e colunista do Lunetas, Viviana Santiago, 40, é mãe do João, 15. Ela  explica por que conciliar maternidade com profissão é um desafio diário. “Demorou para não me sentir culpada por querer continuar trabalhando e crescendo profissionalmente, aceitar que eu gosto de ir ao escritório e fazer as viagens de trabalho”, relata. 

E aponta: “Fui criada para acreditar que a maternidade era tudo e querer também a minha carreira era tirar algo do meu filho’’.

Viviana considera um dos maiores obstáculos como mãe solo lidar com falso moralismo e preconceito. Como mulher negra, nordestina e mãe, a pedagoga já passou por situações onde foi deslegitimada e tratada de forma desrespeitosa, tanto por homens quanto por mulheres.

Para administrar tempo-filho-trabalho, Viviana contou com uma grande rede de apoio, para dedicar-se à carreira: irmãs ajudando, babás presentes durante toda a infância e trabalhadoras domésticas em tempo integral até o filho completar 13 anos. 

“Eu vivi episódios que demonstraram que o mercado de trabalho não se importa com as mães e ponto. É curioso como você é melhor avaliada na empresa quanto menos expressar que necessita de ajustes para garantir os cuidados de sua família. Nós, mães, somos tratadas como se fosse uma grande benesse estarmos trabalhando e, portanto, devemos aceitar qualquer condição”, critica.

Viviana pontua que as organizações deveriam entender que as mães, em particular as mães solo, são uma grande parte da classe trabalhadora e produzem com excelência mesmo sem ter apoio. Melhores condições de trabalho para conciliar a maternidade são imprescindíveis, como entender que não é privilégio o que as mães solo querem, mas sim um tratamento que potencialize suas carreiras profissionais.

“Eu sou mãe solo e sou profissional, e ambas as coisas me fazem feliz. Mas não glamourizo os esforços que fiz. Se o mundo fosse justo com as mães, eu não teria pago esse preço’’, enfatiza.

(Fontes: lunetas.com.br - Com Júlia de Miranda)

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