É preciso falar sobre a relação com narcisistas

Vítimas desse tipo de relacionamento demoram a se conscientizar da sua realidade e geralmente saem devastadas emocionalmente da relação
sexta-feira, 18 de agosto de 2023
por Christiane Coelho (Especial para A VOZ DA SERRA)
(Foto: Freepik)
(Foto: Freepik)

“Só quem tem a experiência de conviver com uma pessoa com características de transtorno de personalidade narcisista sabe o que é. Eu saí de um relacionamento de mais de 20 anos, sabendo que algo estava errado, mas sem consciência do que vivia. Estava totalmente desgastada, sem energia e sem forças mais para lutar pelo casamento. Para todos que nos viam, éramos considerados uma família daquelas dos comerciais de  margarina. Mas dentro de casa, a história era totalmente diferente. As cobranças eram descabidas. Ele nunca estava satisfeito com nada que eu fizesse. Eu já saía do trabalho com medo de qual seria a cobrança e a crítica daquele dia, que resultariam em brigas e humilhações. E, caso não atendesse ao que ele pedia ou queria, vinha o castigo do silêncio. E era um silêncio ensurdecedor, que durava até um mês, como se eu não existisse. O último foi durante uma viagem. Foram dois dias de viagem de carro e sem uma palavra dirigida a mim, sem responder uma pergunta que eu fizesse.

Depois desses castigos, ele vinha querendo ter relações sexuais, como se nada tivesse acontecido. E caso eu falasse em conversar sobre a situação, ele me mandava procurar um médico para me tratar de frigidez, que ele dizia que eu tinha. Essa era a fase da desvalorização, que logo em seguida vinha a o do love bombing. E aí era maravilhoso. A gente curtia com a família, e eu achava que ele estava melhorando. E assim o ciclo do abuso ia acontecendo, durante anos.

Em uma das crises, ele arrumou a mala e saiu de casa, depois de 30 minutos ficou passando mensagens e pedindo para voltar. Eu exigi que procurasse ajuda psicológica, como condição de retorno. Ele foi a uma consulta com o psicólogo e, esperançosa, deixei ele voltar para casa. O tratamento não passou da primeira consulta e, quando eu questionava sobre a terapia, ele falava: ‘Não vou mais. Não preciso. Eu dou aula para os psicólogos’, mesmo ele tendo uma profissão totalmente diferente.

A confusão de sentimentos era grande. Para qualquer um que eu comentasse o que acontecia, vinha: ‘Ah mas ele é tão bom para todo mundo, um excelente pai!’. Ele próprio se afirmava um excelente parceiro: ‘Você tinha que ajoelhar no milho para agradecer pelo marido que você tem!’ Com isso, a decisão da separação era sempre protelada.

Até que, sendo penalizada duas vezes em menos de um mês pelo castigo do silêncio e desconfiada de infidelidade, eu já devastada emocionalmente, decidi dar um basta na relação. No dia que ele saiu de casa foi um misto de alívio e de frustração, por não ter conseguido salvar meu casamento. Mas, uma pessoa com características narcisistas não aceita ser descartada. São elas que têm que dar o ponto final.

E os abusos continuaram, agora usando as crianças para tentar me manipular. Com ameaças de pegar a guarda, entre outras mudanças na vida delas, que trariam fortes prejuízos. Quando ia cobrar por algo que as crianças precisavam, ele falava que não ia dar e isso era consequência da minha escolha no dia da separação. E o pior, para os outros ele fala que eu sou a louca, que não aceita a separação.

Com toda violência sofrida, fui diagnosticada com depressão severa e estou em tratamento até hoje. Com a terapia, tratamento com psiquiatra e muito estudo sobre o assunto, hoje estou fortalecida, entendendo cada passo desse processo e vendo que eu sou uma dependente emocional em recuperação.

Aprendi que não mudo ninguém, muito menos uma pessoa com todas as características de ser narcisista patológica, mas tenho que cuidar de mim, me conhecer para saber exatamente o que posso suportar ou não e colocar os limites necessários para viver de forma sadia, principalmente emocionalmente”.

Com esse depoimento de uma mulher, que preferiu não se identificar, A VOZ DA SERRA publica esta reportagem neste mês em que é realizada a campanha Agosto Lilás, como um alerta e uma forma de conscientizar muitas que estejam passando pela mesma situação e não saibam. Quem se relacionou ou está num relacionamento com uma pessoa com Transtorno de Personalidade Narcisista pode sofrer vários tipos de violência: psicológica, patrimonial, moral, física e sexual.

O que é o Transtorno de Personalidade Narcisista

O diagnóstico do Transtorno de Personalidade Narcisista é feito por profissionais de saúde mental, como psicólogos ou psiquiatras, com base em uma avaliação abrangente do comportamento, histórico pessoal e padrões de pensamento do indivíduo. A psicóloga e escritora Cinthia Lima Ramos explica que “é preciso compreender que a palavra "narcisismo" vem do mito grego de Narciso, o menino que se apaixona por seu próprio reflexo, ou seja, um amor por si mesmo. De acordo com o DSM-V que é Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, o transtorno de personalidade é caracterizado por sentimentos exagerados, uma necessidade excessiva por admiração, falta de empatia, necessidade de bajulação e um padrão persistente de grandiosidade.”

Além dessas características, pessoas com Transtorno de Personalidade Narcisistas podem ser identificadas por promoverem a exploração emocional, física ou financeira de pessoas ao seu redor para atingir seus próprios objetivos; expectativas irrealistas em relação a tratamentos especiais, reconhecimento constante e conquistas excepcionais, muitas vezes não considerando os esforços necessários para atingir essas metas; reações negativas à crítica, com raiva, irritação ou desdém em relação àqueles que as criticam.

Tipos de narcisistas

Nem todos os narcisistas apresentam as mesmas características. “Existe o narcisista exibicionista, que é aquele que adora mostrar de forma exagerada tudo o que faz. Já o narcisista introvertido gosta de ficar no papel de vítima, buscando um olhar de atenção dos outros. E tem o narcisista tóxico, que carrega com ele o controle, assédio e a humilhação”, enumera a psicóloga.

Os narcisistas usam a oratória para desestabilizar o outro. Cinthia dá alguns exemplos de frases que os narcisistas costumam falar:  “O que seria de você se eu não estivesse aqui?”; “Você me deve um pedido de desculpas”; “Você está louca!”; “Você é tão imatura. Quando vai amadurecer?”; “Eu nunca disse isso. Prova então que eu acredito”.

“Existem muitas outras frases, mas esse tipo de discurso gera riscos desconfortos e conflitos internos, quando o indivíduo insiste em aceitar a humilhação e negar a própria realidade atual”, explica Cinthia.

Etapas da relação narcisista

Uma relação narcisista pode seguir algumas etapas, embora nem todas as relações desse tipo sigam um padrão exato. “Geralmente a primeira fase é a idealização onde o narcisista se torna atencioso, romântico, consegue ser para o outro o parceiro dos sonhos. Após conquistar a confiança, o indivíduo acaba sendo refém do narcisista e então começam os abusos verbais, psicológicos, emocionais e em alguns casos até ocorre violência física. 

A segunda fase é a desvalorização, onde o narcisista alimenta a frieza como comportamento e vai se afastando do seu atual par. Nessa fase ocorrem o tratamento do silêncio, manipulação e culpa. Aí a vítima fica com baixa autoestima. E, por fim, o descarte que é a terceira fase, na qual o narcisista despreza ou termina a relação sem muitas explicações”, enumera a psicóloga.

Em algumas relações narcisistas, ocorre um ciclo repetitivo de idealização e desvalorização. O parceiro é levado a acreditar que, se fizer certas coisas ou mudar de determinada maneira, poderá recuperar o amor e a atenção do narcisista. No entanto, essa busca de aprovação é geralmente infrutífera e só contribui para a perpetuação do ciclo tóxico. Algumas relações narcisistas podem passar por repetidos ciclos de desvalorização e reconciliação, com o narcisista voltando a idealizar o parceiro temporariamente para, em seguida, desvalorizá-lo novamente. Mas, quando o parceiro não serve mais aos propósitos do narcisista ou quando ele encontra uma nova fonte de admiração, ele pode descartar o parceiro de forma cruel e fria.

Narcisistas e dependentes emocionais

As pessoas com dependência emocional podem ser mais propensas a se envolverem em relacionamentos com narcisistas devido a uma série de fatores psicológicos e emocionais, como a necessidade de aprovação e valorização e os narcisistas, especialmente na fase inicial de idealização, podem oferecer essa aprovação e elogios de forma intensa, o que pode ser extremamente sedutor para alguém que busca validação externa; baixa autoestima e os narcisistas podem, inicialmente, elevar a autoestima dessas pessoas, reforçando uma sensação de importância e atração.

Além disso, a dependência emocional muitas vezes é impulsionada por um desejo de se sentir segurança e proteção através de um relacionamento e os narcisistas podem inicialmente projetar confiança e segurança, prometendo atender às necessidades emocionais da pessoa dependente. Há também a dificuldade em terminar relacionamentos, mesmo que sejam tóxicos. Os narcisistas podem explorar essa vulnerabilidade, usando a manipulação e a ameaça de abandono para manter o parceiro dependente emocionalmente preso.

Cinthia acrescenta ainda que a dependência emocional é o apego excessivo por outra pessoa, e o dependente acaba projetando as suas expectativas nos outros. “Geralmente cria-se uma relação de codependência onde a pessoa abre mão da sua vida para não perder a relação. Infelizmente o narcisista encontra no dependente emocional alguém muito frágil, que necessita de aprovação do outro, não reconhece as próprias necessidades, ou seja, acaba tolerando tudo isso pela admiração e se torna refém de uma relação abusiva”, explica ela.

Por que é tão difícil sair desse tipo de relação

Sair de um relacionamento com um narcisista pode ser um processo complexo que muitas vezes requer apoio profissional, como terapia individual ou de grupos de apoio. “O narcisista gasta tempo observando o outro e entende os anseios, desejos, necessidades, conhece as fraquezas e sabe o caminho certo para magoar a pessoa que está ao seu lado. Quando se pensa no término, o narcisista faz o outro acreditar que é um perdedor e que a culpa é da parceira. É difícil sair dessa relação, pois um cenário de felicidade foi implementado inicialmente. A pessoa demora muito para reconhecer o caos em que está inserido, estendendo a relação com términos e recomeços, um caminho de muita dor e autopunição até conseguir compreender que é uma relação abusiva e tóxica”, esclarece Cinthia.

Outras dificuldades para sair da relação com uma pessoa com Transtorno de Personalidade Narcisista são a auto imagem abalada, minada pelo narcisista, fazendo-a sentir-se inadequada e sem valor; o isolamento social em que narcisista coloca suas vítimas, afastando dos amigos e familiares, enfraquecendo os sistemas de apoio e dificultando ainda mais o término do relacionamento; medo de represálias, pois narcisistas podem reagir com raiva, agressão ou retaliação quando percebem que estão perdendo controle sobre a vítima.

Como se curar das consequências de ter vivido um relacionamento narcisista

Quem passou por uma relação abusiva com um narcisista pode apresentar várias consequências, como incapacidade de dizer não para os outros, não reconhecimento das próprias necessidades, ansiedade, estresse pós-traumático, dependência emocional, culpa, desorganização, depressão, somatização, insegurança, entre outros. “Cada indivíduo desenvolve ou potencializa algo após essas relações”, explica a psicóloga.

A cura das consequências de ter vivido um relacionamento narcisista pode ser um processo desafiador, mas é possível com o tempo, esforço e apoio adequado. “Aprenda a limitar o contato, reconheça que você saiu de uma relação tóxica, seja disciplinada não volte para o cativeiro, não entre em discussões, pois os jogos mentais do narcisista são estruturados para te fazer sentir culpada, obtenha uma rede de apoio com amigos e familiares, faça uma atividade física, desenvolva o seu autocuidado, busque um psicólogo - em alguns casos é necessário atendimento com psiquiatra -, faça uma lista com seus objetivos, sonhos e projetos, gaste seu tempo com o que realmente importa”, recomenda Cinthia.

Narcisista em todas as relações

Qualquer pessoa pode encontrar um narcisista em qualquer tipo de relacionamento, seja entre pais e filhos, amigos, colegas de trabalho etc. “Os pais narcisistas geralmente são autoritários e limitantes, pois desejam que os filhos atendam todas as suas expectativas e fiquem ali sendo refém de seus desejos inalcançáveis. A idealização, nesse contexto, é muito alta, por isso, são pais superprotetores, teimosos, donos da verdade, abusivos emocionalmente e controladores. 

Já os filhos narcisistas apresentam comportamentos desafiadores, manipuladores, desrespeitam as regras com facilidade, não são empáticos e buscam ser elogiados constantemente. Os chefes ou líderes narcisistas valorizam a admiração, mostram pouquíssima empatia, usam a raiva para manipular, exploram com muita facilidade os seus subordinados, não admitem seus erros, falam com muito autoritarismo e desejam ser agradados e endeusados no ambiente de trabalho”, explica a psicóloga.

Não negociar o que é inegociável

Cinthia finaliza deixando uma mensagem de reflexão aos leitores de A VOZ DA SERRA: “Enquanto o ego ganhar o pódio, vamos continuar lendo, vendo e ouvindo sobre essas relações tóxicas. A sociedade atual tem se baseado demais na autoimagem, ou seja, uma hiper valorização da imagem pessoal e física. Como cidadã, percebo que a indiferença e a falta de empatia só aumentam e a busca pelo próprio prazer é altíssima e até descontrolável. A bíblia, em Coríntios 13; 4 - 6 relata: ”O amor é paciente, o amor é bondoso. Não inveja, não se vangloria, não se orgulha. Não maltrata, não procura seus interesses, não se ira facilmente, não guarda rancor.” Se aprendêssemos a exercer a paciência desse amor e tratar o que precisa ser tratado muitas histórias drásticas poderiam ter sido evitadas, mas infelizmente as pessoas estão decidindo negociar o que é inegociável”, observa a psicóloga. 

Foto da galeria
Psicóloga e escritora Cinthia Lima Ramos
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