Crianças escravas da beleza

União de plataformas digitais e indústria cosmética pode levar ao surgimento de distúrbios de saúde mental relacionados com a vida digital de adolescentes
sexta-feira, 26 de janeiro de 2024
por Jornal A Voz da Serra
(Foto: Freepik)
(Foto: Freepik)

Com voz e rosto angelicais, uma menina de 10 anos ensina, no Tik Tok, o passo a passo de cuidados com a beleza. “Primeiro, aplicar o sabonete em movimentos circulares, depois o tônico que vai dar uma sensação super refrescante. O penúltimo passo é esfoliar a pele para que fique bem macia, e não esqueça de retirar com água no rosto. Por último, o mais importante, o protetor solar, que protegerá a pele dos raios solares.”

A dermatologista Martha Viera revela na mesma plataforma que vão ao seu consultório meninas de 9, 10, 11 anos que seguem 10 passos da rotina cosmética facial pela manhã e outros tantos à noite (…) “Já tiveram irritações, alergias de contato por conta das químicas já que esse tipo de pele não precisa e não está preparada para receber”.

A confluência das plataformas digitais e da indústria cosmética parece estar levando ao nascimento de uma nova rubrica na relação dos possíveis transtornos de saúde mental relacionados à vida digital dos adolescentes. A cosmeticorexia [adição e/ou compra compulsiva de cremes cosméticos] define a obsessão precoce em emular hábitos de cuidado facial e, sobretudo, hábitos de compra de produtos de beleza “recomendados” por “influenciadores” que, tradicionalmente, eram mais apropriados para mulheres mais velhas e com maior poder aquisitivo.

Esse processo de rejuvenescimento do consumidor de cremes e tintas está deixando sua marca nos cenários do cotidiano. O TikTok acumula mais de 64 milhões de vídeos tutoriais de maquiagem para todas as idades, com protagonistas como a jovem Kassie, de seis anos, que, sob o olhar da orgulhosa mãe, Shab, mostra aos seus quatro milhões e meio de seguidores, de pincel na mão, como uma criança com educação adequada pode “dominar a maquiagem melhor do que a maioria das mulheres adultas”.

Adeus à mítica maleta Miss Pepis [maleta de maquiagem], mero objeto de culto depois desta nova onda onde muitas meninas e jovens querem jogar, cosmeticamente falando, na liga sênior. As publicações em torno de #sephorakids acumularam mais de 371 milhões de visualizações no TikTok, rótulo que capta as aventuras das meninas loucas por cremes nos corredores das lojas americanas da rede Sephora, o novo templo por onde passam os pequenos. Eles testam cosméticos sonhadores e inacessíveis e fazem recomendações para usuários mais velhos. 

O fenômeno dá origem a uma experiência social como a que Lauren, uma jovem professora de ioga, realiza com sua linda e maquiada filha de 10 anos, a quem pede, dentro de uma loja Sephora, que escolha todos os seus produtos preferidos, em menos de dois minutos. Trezentos dólares depois, o vídeo acumulou três milhões e meio de visualizações e duras críticas. “Leve-a para uma loja de brinquedos!”, comentou um usuário da plataforma.

Data de validade

A dermatologista Ana Molina conta que sempre que vê nas redes sociais as penteadeiras das ‘influencers’ cheias de potes de cremes meio usados, dezenas de bases de maquiagem abertas, bronzeadores de todos os tipos, paletas de sombras de mil cores, batons, só consigo pensar “no festival da microbiota que se organiza naquelas gavetas, porque ali há bactérias para alimentar toda a humanidade. Sem falar na sujeira que se acumula nas esponjas e pincéis que servem para aplicar todos esses produtos”, alerta. E isso não acontece apenas pela compra compulsiva de cosméticos, mas também porque raramente seu prazo de validade é respeitado. 

“Uma base já desatualizada não terá a mesma aparência, pode formar grumos, ter uma textura diferente e até cheirar a velho. Com os alimentos, por exemplo, temos bastante clareza de que devemos respeitar os prazos de validade para evitar intoxicações. Porém, o mesmo não acontece com os produtos cosméticos, que podemos usar durante anos sem levar em conta essa informação”, alerta a dermatologista. Um corretivo, sombra ou soro vencidos podem causar desde infecções (conjuntivite, terçol...) até herpes ou surtos de dermatite e acne.

Portanto, quando compramos um cosmético temos que olhar para duas datas diferentes: o prazo de validade do produto e o prazo de validade depois de aberto, representado pelo desenho de um frasco com a tampa levantada. Se aparecer um 6 no interior, significa que o cosmético expira seis meses após ser aberto; se for 9, após nove meses, e se for 24, após dois anos. E cuidado redobrado com os produtos que aplica nos olhos, porque podem causar infecções graves.”

Quase ficou cega por dica no TikTok

No ano passado, Amelia Gregory, uma menina de 13 anos de Cheshire, na Inglaterra, deparou-se com um vídeo de uma influenciadora também adolescente, que dava dicas de beleza no TikTok. No clipe, a garota ensinava truques de cuidado com a pele, que Amelia resolveu seguir. O que ela não imaginava é que isso quase resultaria na perda de sua visão.

A influenciadora mostrava como usar produtos para deixar a pele brilhando e que ajudariam a retardar o envelhecimento — vale ressaltar que ela tem apenas 13 anos. Porém, alguns dos produtos recomendados continham uma substância chamada retinol na composição. O retinol é uma forma de vitamina A, usado frequentemente em cosméticos que prometem a redução das rugas. Embora o ingrediente aumente a produção de células da pele, quando usado em excesso, sobretudo em peles mais jovens e sensíveis, pode causar queimação, vermelhidão e descamação.

“Amelia desceu correndo as escadas com o rosto vermelho e gritando de dor”, lembra Claire, 41, mãe da adolescente, que é médica de saúde feminina, em entrevista ao tabloide britânico Daily Mail. “A pele do rosto dela estava descascando e ela tinha manchas vermelhas. Perguntei, em pânico, o que ela tinha feito. Chorando, ela falou do vídeo sobre cuidados com a pele”.

A garota explicou que seguiu as instruções de skincare de uma menina influenciadora. No vídeo, ela ensinava os seguidores a fazer uma 'máscara' usando um creme de retinol e um produto com um ácido fraco, frequentemente usado por mulheres mais velhas para iluminar e esfoliar a pele. “O que quer que ela tenha colocado, queimou tanto a pele que ela ficou com vergões. Fiquei atordoada”, explica a mãe, que levou a filha ao médico.

O especialista, a princípio, disse que o problema se resolveria rapidamente, mas, com o passar dos dias, a pele de Amelia foi ficando mais dolorida e o olho esquerdo inchou. A mãe a levou à farmácia, em buscar de algo que pudesse aliviar o problema, mas foi orientada a correr com a filha para o pronto-socorro.

No hospital, a adolescente foi internada imediatamente porque, em questão de dias, tinha desenvolvido uma infecção bacteriana nos tecidos sob a pele — uma condição conhecida como celulite facial. Essa infecção atingiu o olho. 

“A certa altura, parecia que se espalharia para o olho direito também. Os médicos me disseram que a infecção poderia fazer com que ela perdesse a visão. Mais tarde naquele dia, mal conseguindo abrir os olhos ou piscar, Amelia recebeu soro intravenoso. 

Os riscos para a pele

Os especialistas relatam um aumento preocupante de casos semelhantes, à medida que os jovens assistem cada vez mais a tutoriais na internet, desde esfoliação e peelings até hidratantes e máscaras caseiras – alguns deles ensinados por crianças a partir de 10 anos. Esses jovens, alvos dos vídeos, representam um mercado em expansão para produtos de cuidados com a pele e de beleza e, ao crescerem no mundo dos meios digitais, tornam-se seguidores ávidos de influenciadores de beleza. 

E alertam: os jovens não devem usar retinol, porque é muito poderoso, sobretudo para uma pele em desenvolvimento. Mesmo os adultos precisam usá-lo com cuidado, depois de um teste de contato para ver se causa reação e começando com uma concentração baixa. Os únicos casos em que o retinol pode ser recomendado para adolescentes é em alguns tipos de tratamento de acne, mas sempre com prescrição médica e supervisão.

Claire resolveu se manifestar para alertar outros pais sobre os perigos. “Fique atento ao que seus filhos estão acessando online, certifique-se de que eles cuidem da pele apenas com produtos feitos para peles jovens”, recomenda. “Como mãe de Amelia, assumo total responsabilidade pelo que ela estava vendo. Mas acho errado que um creme contendo retinol possa ser vendido para crianças. Os médicos conseguiram salvar a pele e a visão dela, mas poderia ter sido diferente”, ressalta.

(Fontes: El País, El Correo e revistacrescer.globo.com)

 

Publicidade
CONTINUA DEPOIS DA PUBLICIDADE
Publicidade
Publicidade
Publicidade

Apoie o jornalismo de qualidade

Há 79 anos A VOZ DA SERRA se dedica a buscar e entregar a seus leitores informações atualizadas e confiáveis, ajudando a escrever, dia após dia, a história de Nova Friburgo e região. Por sua alta credibilidade, incansável modernização e independência editorial, A VOZ DA SERRA consagrou-se como incontestável fonte de consulta para historiadores e pesquisadores do cotidiano de nossa cidade, tornando-se referência de jornalismo no interior fluminense, um dos veículos mais respeitados da Região Serrana e líder de mercado.

Assinando A VOZ DA SERRA, você não apenas tem acesso a conteúdo de qualidade, mantendo-se bem informado através de nossas páginas, site e mídias sociais, como ajuda a construir e dar continuidade a essa história.

Assine A Voz da Serra

TAGS: