Nesta entrevista com a historiadora Vanessa Melnixenco, em comemoração pelos 202 anos de Nova Friburgo completados neste 16 de Maio de 2020, o pano de fundo não poderia ser outro: a pandemia do novo coronavírus. No entanto, a festa que não acontecerá há de ficar marcada para sempre nos anais da história deste município. Por isso mesmo, e apesar disso, é preciso deixar registrado nas páginas de A VOZ DA SERRA, o depoimento de uma de suas cidadãs para expressar os sentimentos de muitos de nós, friburguenses natos ou adotados. Escolhemos Vanessa Cristina Melnixenco, historiadora pela Faculdade de Filosofia Santa Dorotéia e mestre em História Social pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Ela divide seu tempo entre a pesquisa e o magistério: é professora de história da Prefeitura Municipal de Nova Friburgo, professora de francês da Aliança Francesa de Nova Friburgo e historiadora do Nova Friburgo Country Clube. Tem cinco livros publicados.
AVS: O que sente a historiadora ao observar o dia a dia de Nova Friburgo em isolamento social?
Vanessa Melnixenco: A princípio, quando vi notícias e fotos das principais ruas da cidade desertas, senti uma forte melancolia. É triste ver estampada na realidade uma cena que mais parece de ficção científica. A rua é, categoricamente, um local cheio de vida, um espaço de encontro e de troca. Uma rua sem pessoas perde seu propósito. Mas, ao mesmo tempo, encarei a situação com certo alívio, já que as pessoas estavam respeitando as normas e se refugiando em suas casas. Passado um tempo, tudo isso me soa distante, pois, infelizmente, o movimento na rua parece aumentar a cada dia. Isso é um reflexo da mentalidade que se cultiva no Brasil desde que nosso país “entrou pra história”: como a coisa pública é usada para fins particulares, muita gente pensa que não vai dar em nada desrespeitar uma regrinha. Como, historicamente, a nata da sociedade sempre deu seu “jeitinho”, o brasileiro conclui que seguir a lei é uma tolice. Apesar de tudo, o que consola, é pensar que a maioria da população tem ido contra essa corrente egoísta.
Que reflexões você tem feito a esse respeito?
As reflexões são tantas... A fragilidade da vida. A concretude da morte. A morte em meio a uma pandemia que escancara a desigualdade social. A precariedade do trabalhador. A civilidade que não garante saneamento básico. A violência dentro de casa. Não podemos medir o mundo apenas por nossas próprias experiências. Isso é perigoso! Leva ao egoísmo, ao autoritarismo. E isso tem crescido tanto! O que precisa ganhar força é a simplicidade, a humildade, a humanidade. Os sobreviventes da bomba jogada sobre Hiroshima pediram desculpas aos mortos por estarem vivos! Fala-se tanto da civilidade japonesa, mas vejam esse testemunho de compaixão. A tragédia não pode ser eliminada, mas pode ser suportada com o amor.
Como tem vivido esse novo cotidiano?
Acredito que o que eu tenho vivido seja a realidade de muitas pessoas: a rotina se mantém a mesma, tirando o fato do trabalho dobrado. Não que tenha havido um aumento da demanda. É que precisamos nos adaptar à dependência do virtual, à preocupação vigilante com a higiene, reaprender até os gestos mais corriqueiros e instintivos, como beijar e abraçar. Mas, uma coisa que aprendi com Viktor Frankl, é que há sofrimentos inevitáveis. O que nos cabe é a atitude que temos diante deles. Acho que o importante é tentar se manter são, física e espiritualmente.
Diante das crises que diariamente se abatem sobre o país, o que mais a aflige?
A aflição parece não ter fim nesses tempos de coronavírus. Não bastassem os próprios males do vírus em si, ainda nos deparamos com a ignorância dos que teimam em negar a doença, dos que a justificam com as teorias mais estapafúrdias (inspiradas em preconceitos e achismos), ou ainda, os que desrespeitam décadas de pesquisa científica, mas enchem o peito para dizer que a cura está logo ali.
Fala-se muito que as pessoas vão sair melhores dessa tragédia, que hão de ser mais tolerantes e solidárias umas com as outras, que cuidarão melhor do planeta. Qual a sua expectativa quanto à pós-pandemia?
Confesso que tenho certa desconfiança da humanidade, mas, ainda assim, prefiro acreditar que “nada será como antes”. É impossível sair ileso dessa pandemia e espero que as pessoas mudem a forma de pensar e de agir no mundo. Nem todos terão essa sensibilidade, é claro, mas os que se permitirem, sem dúvida o farão. E que o movimento seja de dentro pra fora, a fim de permitir uma mudança não apenas individual, mas coletiva, isto é, não apenas para a humanidade, mas para toda a vida da nossa “casa comum”, como diz Leonardo Boff. Recentemente, a Companhia das Letras publicou um breve ensaio de Aílton Krenak, intitulado “O amanhã não está a venda”, no qual ele aborda este momento pelo qual passamos. Logo no início da narrativa, Krenak se recorda que sugeriu que, para devolver a vida ao rio Doce, seria necessário paralisar todas as atividades ao longo de seu leito. Os engenheiros lhe responderam: “Impossível! O mundo não pode parar.” E o mundo parou!
Que mensagem deixa aqui para Friburgo e seus moradores nesta data de aniversário?
Em primeiro lugar, que se protejam. Todos, todas. Em segundo, que mantenham a esperança. Não é a primeira vez que enfrentamos esse tipo de problema. A História nos mostra que nada é definitivo, e aí está o que mais me fascina nela!
Como assim?
Ao longo da história da humanidade já houve muito sofrimento. Não quero comparar dores, mas é importante lembrar que outras pessoas já enfrentaram muitas provas. Quando o isolamento começou, eu me lembrei de Anne Frank, a menina judia de 12 anos que se refugiou num anexo secreto com toda a sua família, numa tentativa de se esconder dos nazistas. As refeições tinham que ser ligeiras; os banhos, uma vez por semana; o menor ruído podia denunciá-los. Isso tudo durante três longos anos. Somente o pai e o diário dela sobreviveram para nos dar testemunho desse momento tenebroso da história. E, foi nas páginas desse diário que ela nos deixou uma grande lição: “Apesar de tudo, eu ainda creio na bondade humana”. Eu também acredito, Anne, sobretudo quando eu olho para o céu azul do outono friburguense e vejo algumas pipas ziguezagueando. São mãos de crianças que transformam um antigo objeto bélico, em encantamento, como disse Luiz Antonio Simas (historiador e escritor). A vida e o bem hão de resistir.*
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