Friburguense de coração e moradora de Israel foi repatriada, junto com três filhos pequenos, no último avião da FAB

sexta-feira, 27 de outubro de 2023
por Christiane Coelho (Especial para A VOZ DA SERRA)
Melissa ao lado dos seus pais Fany e Davi (Fotos: Henrique Pinheiro)
Melissa ao lado dos seus pais Fany e Davi (Fotos: Henrique Pinheiro)

Os sentimentos se misturam: alívio e segurança por estar na casa dos pais, em Nova Friburgo, com os três filhos pequenos. Mas, aomesmo tempo, preocupação e medo, pois o marido foi convocado pelo Exército Israelense e está na Faixa de Gaza, na fronteira entre Israel e Palestina, onde acontecem os maiores conflitos da guerra, deflagrada no último dia 7.

Melissa Zissu Issachar nasceu em Israel, quando os pais, os empresários Fany Kliger Zissu e David Zissu, moraram lá. A família voltou para o Brasil, quando Melissa tinha 3 anos, e escolheu Nova Friburgo para morar. Aqui ela cresceu, estudou no Colégio Anchieta até o ensino médio e fez amigos. Com os avós, tanto paternos, quanto maternos, morando em Israel, a família sempre viajava para o país do Oriente Médio.

Depois de se formar em Engenharia Elétrica, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e trabalhar dois anos na área, ela, que já tinha o desejo de morar na sua terra natal, conheceu seu marido, Gil Issachar, também israelense, quando ele estava de férias no Rio de Janeiro. Em 2007, Melissa se mudou para Israel, se casou e teve três filhos, hoje um com 8 anos, outro com 6 anos e o caçula, com 3 anos.

Melissa conta que a vida da família era ótima. Ela e o marido com bons empregos, as crianças na escola. Era uma vida normal e, de uma hora para outra, com o ataque do Hamas a Israel, da maneira mais cruel, tudo mudou.

Melissa recebeu a equipe de A VOZ DA SERRA, na casa de seus pais e, numa entrevista emocionante, conta como está a realidade do país, onde nasceu, para onde escolheu voltar e criar sua família, e de onde teve que sair correndo e deixar tudo para trás, sem saber quando volta para sua casa, seu lar.

Você nasceu em Nova Friburgo?

Não. Eu nasci em Israel, no período em que meus pais moraram lá. Mas viemos para Nova Friburgo, quando eu tinha 3 anos. Cresci aqui. Comecei estudando na Creche Folhinha Verde, na Avenida Galdino do Valle Filho, depois fui para o Colégio Anchieta, onde estudei até terminar o ensino médio. Eu sempre sonhei em morar em Israel. Nossa família viajava pra lá para visitar nossos avós paternos e maternos, que moravam lá. E eu me encantei com o lugar. É um país muito bom, organizado, com ótimas oportunidades. Aí, eu já queria mudar para lá, quando terminei o ensino médio. Mas meus pais me aconselharam a fazer a faculdade aqui e ir já formada. Fiz Engenharia Elétrica na Uerj. Aí, novamente meus pais me falaram para eu trabalhar um período aqui e já partir com experiência na área. Foi quando conheci meu marido, também israelense, que estava passando férias no Rio de Janeiro. Depois de dois anos trabalhando no Brasil, comecei a ligar para empresas de lá e consegui marcar entrevistas de emprego. Eu fui para Israel, onde passei duas semanas, fazendo entrevistas de trabalho. Na época, estava trabalhando em São Paulo. Assim que assinei o contrato de trabalho em Israel, pedi demissão e me mudei para lá, em 2007.

Você mora próximo à Faixa de Gaza? Viu ataques?

Moramos em Hot Hasharon, no Centro de Tel Aviv, que fica a 80 quilômetros da Faixa de Gaza. Não vi ataques próximos, mas escutei mísseis. Israel tem a tecnologia de interceptar os mísseis e ver onde provavelmente cairiam. Então somente naquele lugar, toca-se a sirene e temos que ir para o quarto de segurança. Nos prédios mais novos, como o que eu moro, os apartamentos têm um quarto de segurança, um bunker, com parede, portas e janelas reforçadas por ferros. Os apartamentos mais antigos, tem esse quarto no térreo. Em todo parque, em parquinho, locais públicos tem o bunker para entrada em caso de toque da sirene. Na nossa cidade, que é teoricamente longe, temos um minuto e meio para entrar, mas as cidades que estão mais próximas da Faixa de Gaza, que entrar nesses quartos em dez segundos. Nesses lugares, há famílias, que decidem ficar o tempo todo no quarto de segurança, com medo de não dar tempo de entrar, caso haja um ataque. E aí a vida é bem mais difícil.

Vocês recebem um treinamento para isso?

As crianças nas escolas, sim. Geralmente, no primeiro dia de aula sempre tem treinamento. Nas escolas, eles chamam de treinamento para casos de terremoto, mas na verdade é a mesma coisa. As crianças sabem exatamente em qual dos ambientes eles têm que entrar. Na escola do meu filho, por exemplo, tem oito desses quartos. Cada classe sabe para onde tem que ir.

Com toda essa preparação,  como vocês encaram as guerras?

Até hoje, todas as guerras que tiveram foram mais tranquilas, porque estamos preparados e moramos longe das fronteiras. Temos esses quartos, o sistema de interceptação dos mísseis, quase nenhum está caindo em área... O problema dessa guerra foi como começou. A entrada de mais de mil dos terroristas de jipes, motos, com o objetivo, não só de matar, mas de torturar. Não sei como vocês escutam as notícias aqui, mas a população de Israel é de nove milhões de pessoas. O que aconteceu nesse primeiro dia de guerra, atingiu ou matou quase duas mil pessoas. Então toda pessoa em Israel conhece alguém que, ou morreu, ou está sumido, ou está sequestrado por esse grupo terrorista. Tem uma pessoa que trabalha comigo, que a família toda foi sequestrada. Tem bebês de seis meses e tem idosas de 85 anos, raptadas. Eles não raptaram soldados. Raptaram e também torturaram pessoas inocentes. Foi uma forma de atingir também emocionalmente o país. Cerca de 200 corpos não foram reconhecidos ainda, porque, na realidade, só sobraram cinzas.

Seu marido foi convocado pelo Exército Israelense. Ele é militar?

Ele é engenheiro de biotecnologia e trabalha para uma empresa canadense. Ele estava no meio de uma pesquisa, que possibilita a descoberta do Alzheimer 30 anos antes da doença aparecer. E, com o ataque o Hamas, ele foi convocado, e teve que parar o trabalho. O problema não é o dinheiro, porque o salário é pago pelo governo, mas tudo está parado, sabe? É o projeto de vida dele, Ele é o chefe da pesquisa e agora o pessoal do Canadá está esperando...

Como funciona essa convocação para o Exército?

O Exército Israelense é diferente do daqui. Lá, quando acaba o ensino médio, rapazes e moças são obrigados a servir, antes de ir para a faculdade. Para os homens são três anos e para as mulheres, dois anos e meio. Depois, eles podem fazer a faculdade, ter sua profissão, mas ficam na reserva e devem se apresentar quando são convocados. E isso é muito cultural. Todo mundo sabe que se não for, vão faltar pessoas. Lá é um fazendo pelo outro e não só no Exército. Quando essa guerra começou, os soldados receberam ligação do Exército, pegaram as coisas e foram. Ninguém foi preparado para ir e ficar o mês. Meu marido fez uma bolsa com itens de higiene, toalha, mas mesmo assim, não é uma coisa preparada para ficar o mês. Nas primeiras horas o povo, de uma forma solidária, incrível, toda a população já começou a se mobilizar, a mandar coisa de higiene, roupa, meias, cuecas, toalhas, e colchões. Eles foram, sem ter onde dormir, todo mundo já é voluntário.

Pela cultura, eles estão lá para proteger o todo, não é?

Exatamente. E cada um faz a sua parte: quem não está convocado no Exército, faz o que está dentro das suas condições. Então, por exemplo, psicólogos estão oferecendo tratamento de graça para quem foi afetado. Tem cidades próximas à Faixa de Gaza com 20 crianças, de dois, três anos, que ficaram sem pais. Mataram os pais e deixaram as crianças. Tem voluntários trabalhando com essas crianças. Israel tem hoje em torno de 120 mil pessoas, tanto do Sul, quanto do Norte, da fronteira com o Líbano, fora de suas casas. Pediram para eles saírem de casa para ir para o centro do país. Então as pessoas da área central estão recebendo famílias, amigos, todo mundo morando junto. Todos os hotéis do país da área central estão, agora, disponíveis para quem está desabrigado. Por isso, os hotéis estão cheios de moradores do norte e do sul que foram desalojadas. Quem está pagando é o governo.

Você consegue se comunicar com o seu marido? E ele entrou já em algum confronto?

A gente se fala todos os dias por Whatsapp. Dessa vez, ele não está no front, mas em outras guerras, sim. Ele já está há 20 anos no Exército. Ele está no comando de uma tropa de 500 soldados. Mas mesmo assim é preocupante, porque está muito perto, vê todos os foguetes da Faixa de Gaza sendo lançados para Israel. Eu acho que a gente só vai ter noção do que realmente aconteceu depois. O irmão do meu marido foi um dos primeiros a chegar no terror que aconteceu. Ele viu coisas que nenhum ser humano deveria ver. Corpos dilacerados, bebê sem cabeça, grávida com a barriga aberta e bebê retirado… Essas são histórias verdadeiras, constatadas por ele... Tem uma frase que diz que “agora a gente tem que estar pronto para lutar pelo nosso país. E depois a gente vai ter tempo para ficar de luto.” Agora, tem que fazer o que é necessário, para não deixar o terror avançar e atingir outras pessoas. 

E como foi tomar a decisão de vir para o Brasil?

Eu acho que foi a decisão mais difícil da minha vida. Eu chorei por 12 horas sem parar, por meu marido ficar lá. Meus amigos, minha vida. E também por tirar meus filhos de casa, da vida deles… Eles têm uma vida lá, já estão com saudade dos amigos. Mas, quando começou a guerra, as escolas pararam totalmente e eu continuei trabalhando de casa, com os três filhos. Foi muito estressante, com meu marido no Exército, na área de conflito e eu tendo que dar conta de tudo, não só fisicamente, mas também emocionalmente. Mesmo tendo minha sogra, que sempre me ajuda e a considero minha segunda mãe, mas, ela também tem que cuidar do estresse dela, já que está com três filhos na guerra. E esse voo da FAB, que nos trouxe ao Brasil, foi o oitavo e o último. Isso também me ajudou a tomar uma decisão mais rápido, porque ou é agora ou nunca. E aí foi difícil mesmo deixar todo mundo lá, principalmente meu marido, porque, a cada duas semanas, ele poderia sair para nos visitar. Mas ele também achou melhor que nós viéssemos para o Brasil. E não tive nem muito tempo de preparar nossa vinda, porque entrei contato com a Embaixada do Brasil, em Israel, no sábado, às 21h solicitando lugar no voo, mas eles falarm que não havia mais lugar e deixariam meu nome na fila de espera. No domingo, às 9h, me ligaram falando que havia lugar para gente, mas tinha que estar no aeroporto às 12h. Foi uma correria, mas conseguimos.

E como foi o voo? 

O pessoal da FAB foi maravilhoso, muito atencioso, desde o aeroporto. Havia pessoas na dúvida, até o último momento, se isso era a coisa certa, porque, na realidade, estavam deixando uma vida, alguns deixaram seus filhos, outras, pais e maridos, sem saber quando os veriam novamente. Eles conversaram, ajudaram... tinha psicólogo,  enfermeiro, médico no avião. Viemos com todo apoio.

As crianças têm noção do que está acontecendo?

Eles têm noção e isso também influenciou na minha decisão de vir. O pequeno já estava mostrando sinais de medo, ele não ia para a cozinha sozinho, tudo eu tinha que fazer com ele. Eles percebem o clima de tensão, né? Apesar de eu não deixar assistir à tv, porque só havia notícias da guerra. Eu ficava vendo televisão pelo telefone, com fone de ouvido, mas comecei a ver também a perceber que as crianças estavam ficando diferentes. O pequeno falou uma frase que cortou meu coração. Ele não quis deixar seu bichinho de pelúcia sozinho em casa, uma vez que a gente saiu. Ele falou: a gente não pode deixá-lo sozinho, porque se tocar a sirene, ele não vai saber entrar sozinho no quarto protegido. Uma criança de três anos falando essa frase... é uma realidade que nenhuma pessoa deveria passar e já estava impactando meu filho.

Você está conseguindo trabalhar daqui?

Eu trabalho em uma empresa americana de consultoria, de TI e estou trabalhando daqui. E vou tentar ensinar às crianças, já que estão perdendo aula. A gente veio para o Brasil, sem saber quando volta, então não tem como parar a vida…

Gostaria de deixar uma mensagem?

Eu acho que o mais importante é: as pessoas normais não querem guerra, nem Israel quer guerra. Quem está hoje no Exército são pessoas que têm filhos, pais, mulheres, como meu marido... Eu acho que também, na Faixa de Gaza, tem pessoas que não querem conflito. O problema é realmente o Hamas, esse grupo terrorista, que está atrapalhando os dois lados, não deixando nenhum deles viver. A gente sofre com a guerra. É uma pena ter que gastar tanto dinheiro, perder tantas vidas com a guerra. Eu espero que isso acabe rápido para podermos voltar, porque Israel é maravilhoso, desenvolvido, tudo arrumado, tudo limpo, e é tão bom viver lá. É a nossa terra. 

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