Elisa Lucinda, uma poeta ativista

sábado, 14 de março de 2020
por Ana Borges (ana.borges@avozdaserra.com.br)
Elisa Lucinda, uma poeta ativista

A capixaba Elisa Lucinda, 62 anos, é poeta, jornalista, atriz e cantora, reconhecida pelo seu ativismo em relação a questões sobre gênero e raça. Fundou a Casa Poema, no Rio de Janeiro, onde são oferecidos saraus, encontros com escritores, oficinas e cursos de poesia falada. Com mais de 11 livros publicados, sua obra de maior sucesso é a comédia poética “Parem de falar mal da rotina”.

Graduada em jornalismo, exerceu a profissão até 1986 quando mudou-se para o Rio disposta a tornar-se atriz. Virou poeta, mas não abandonou o teatro, o cinema e a TV. Em 1994 publicou seu primeiro livro de poesias O Semelhante, embrião da peça de mesmo nome, que esteve em cartaz por mais de seis anos no Brasil e no exterior. Nela, entremeava seus versos com uma conversa com a platéia, estilo personalíssimo de suas apresentações.

Ela é considerada a artista da sua geração que mais populariza a poesia. Seu modo coloquial de se expressar faz com que o mais complexo pensamento ganhe fácil compreensão. Com a atriz Geovana Pires criou a Companhia da Outra, grupo teatral que desenvolve sua linguagem de teatro essencial através da poesia. Fez várias apresentações teatrais, com declamação de seus poemas, algumas das quais com a participação especial do ator Paulo José.

No mesmo formato, apresentou diversas peças, tendo, inclusive, participado do Fórum Internacional de Culturas 2004, em Barcelona, onde foi efusivamente aplaudida pela crítica e pelo público. Além de popularizar a poesia, tanto no palco como na tela, sua presença no palco é sempre marcante, tanto que cativou o público com sua voz ao viver a cantora Pérola na novela Mulheres Apaixonadas, de Manoel Carlos.

Todas as formas de expressão

Elisa Lucinda escuta vozes interiores. Uma delas recomenda: “edite!”. Assim, nasce o segundo romance da autora: uma prosa poética, que reúne os pensamentos mais livres e plurais de uma brasileira, adulta, negra, que vive os dilemas e paradoxos da sociedade contemporânea. No “Livro do Avesso, os pensamentos de Edite”, Elisa Lucinda desnuda, com graça e leveza, o íntimo de sua personagem narradora-protagonista.

Edite é também uma aficionada pelas palavras, toma notas de suas vivências e de seus sonhos. Seus pensamentos e memórias são repletos de cores e embalados por músicas; contam de amigos e familiares, questionam tradições e costumes religiosos, reclamam de convenções sociais, apontam preconceitos. Acima de tudo, o livro revela uma intimidade feminina – Edite fala de seus desejos ocultos, por vezes controversos, da mesma forma simples com que aborda seus cuidados rotineiros com o cabelo, a pele, a roupa, a casa.

Em uma coleção de mais de cem pensamentos de sua personagem, Elisa Lucinda encontra o jeito singelo de falar de amor, do sexo, da morte, do medo, da saudade. Há, no livro, uma crítica à moral coletiva: passagens do cotidiano por vezes induzem a protagonista a reflexões perturbadoras. E Edite ouve também vozes – suas e alheias – que tentam reprimir instintos mais subversivos.

Publicado pela Editora Malê, lançado ano passado, os textos de Livro do Avesso… revelam os caminhos íntimos e inquietantes da imaginação da poetisa. 

 

Penetração do Poema das Sete Faces

Elisa Lucinda

(A Carlos Drumond de Andrade)

 

Ele entrou em mim sem cerimônias

Meu amigo seu poema em mim se estabeleceu

Na primeira fala eu já falava como se fosse meu

O poema só existe quando pode ser do outro

Quando cabe na vida do outro

Sem serventia não há poesia não há poeta não há nada

Há apenas frases e desabafos pessoais

Me ouça, Carlos, choro toda vez que minha boca diz

A letra que eu sei que você escreveu com lágrimas

Te amo porque nunca nos vimos

E me impressiono com o estupendo conhecimento

Que temos um do outro

Carlos, me escuta

Você que dizem ter morrido

Me ressuscitou ontem à tarde

A mim a quem chamam viva

Meu coração volta a ser uma remington disposta

Aprendi outra vez com você

A ouvir o barulho das montanhas

A perceber o silêncio dos carros

Ontem decorei um poema seu

Em cinco minutos

Agora dorme, Carlos.

 

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