Parei de fumar há mais de 20 anos. A fumaça e o cheiro me incomodam. Minha inimizade com a nicotina, essa droga covarde, acontece no plano social e no pessoal. Em mais de 30 anos de cancerologia, perdi a conta de quantos vi morrer só porque fumavam. No ano passado, morreram mais 145 mil pessoas no Brasil, por causa do cigarro. É uma epidemia. Matou mais gente do que a Aids somada a todas as outras doenças infecciosas e às mortes por acidentes e violência urbana.
No plano puramente pessoal, a inimizade é até maior. Maltratei meu corpo com cancerígenos de ação lenta durante quase 20 anos. Mais grave ainda, o cigarro matou meu pai, um irmão alto e bonito aos 45 anos e um sogro querido.
Apesar de toda a motivação pessoal, se quiser ser honesto, devo confessar que ainda sonho com o cigarro. Sonho que estou fumando e sinto uma decepção horrível: “Que idiota, voltei a fumar!”. Então, acordo.
Quando larguei, era muito pior. Chegava a sonhar com essa cena duas vezes na mesma noite. Depois, foi espaçando.
A nicotina age no cérebro e altera o metabolismo dos neurônios. É a droga mais difícil de largar. Proíbo um adolescente com tuberculose de jogar fumaça nos pulmões. Ele entende, abandona a maconha, o crack, mas o cigarro não: “É mais difícil do que o crack, doutor!”.
De tanto ter ouvido e nunca escutado o contrário, acabei convencido do valor estatístico da observação. A nicotina provoca uma doença crônica, recidivante. Por isso ninguém tem o direito de julgar moralmente um fumante. Defendermo-nos da fumaça deles é uma coisa, dever de todos, mas considerá-los pessoas pusilânimes só porque fumam é demonstração de ignorância da ação farmacológica da nicotina.
Todo mundo que fuma — até os que dizem “fumo mesmo, e daí?”, qualquer um, sem exceção, largaria imediatamente se isso não lhe trouxesse sofrimento. Que ser humano encontra prazer na escravidão? Quem gosta de andar com hálito de cinzeiro, com a pele sem vitalidade, com o fôlego curto e de correr o risco de ficar impotente ou de ter um ataque cardíaco no almoço de domingo?
Não vamos nos iludir, o fumante só não larga o cigarro por uma razão: não consegue. Não encontra forças para vencer a dependência. A síndrome de abstinência da droga desnorteia o coitado. Quando ela vem, a vida veste seu manto cinzento, e o corpo entra numa agitação crescente, inexorável. Só quem já passou por isso sabe o que é.
Então basta a primeira tragada, e a felicidade torna-se possível outra vez. Mas por pouco tempo. Menos de uma hora depois, a abstinência cruza os braços à soleira da porta: “Vai fumar já ou quer que espere?”. O dia inteiro nesse tormento, a vontade do usuário curva-se à abstinência.
A nicotina é vil, persistente, derrota pelo cansaço. Em poucos dias, faz o principiante virar cachorro manso. Daí em diante, é um maço por dia. Todo santo dia, 60 milhões de mulheres e homens no Brasil inteiro, pelo resto de suas vidas, molham a mão do fornecedor.
Você, fumante, precisa de determinação. Se não confia na força de vontade para parar de uma vez, pelo menos tente diminuir a dose. É lógico que dá! Ninguém perde o juízo se não fumar 20 ou 30 cigarros por dia. Dez não está bom para começar? Dez fazem menos mal e é mais do que suficiente para aplacar as crises mais torturantes.
Diminuir o cigarro sempre é possível. Mesmo que numa noite desvairada você enfie o pé na jaca e fume dois maços, a ressaca do dia seguinte vai ajudá-lo a segurar outra vez. Depois de ter feito isso, experimente parar um dia inteiro, só para ver como é.
Calma, é um dia só, no outro você volta aos dez. Ou, talvez, um pouco menos, quem sabe. Custa experimentar? Afinal, um mínimo de brio ainda lhe resta. Vai morrer sem tentar?
*Médico cancerologista e escritor
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