Paris, 1857. O professor francês Hippolyte Léon Denizard Rivail, de 53 anos, estava prestes a colocar um ponto final em seu mais novo livro quando se viu tomado por uma dúvida: usar seu nome de batismo ou recorrer a um pseudônimo?
Sua mais nova publicação, O Livro dos Espíritos, nada tinha a ver com os mais de 20 livros didáticos, de física, química e matemática, que ele já tinha escrito e eram adotados em escolas e universidades. Foi quando Rivail se lembrou de que, em uma das muitas sessões mediúnicas de que participou, um "amigo espiritual de vidas passadas" de nome Zéfiro havia dito que, na época do imperador Júlio César, entre 58 e 44 a.C., ele tinha sido um líder druida na sociedade celta. Seu nome era Allan Kardec.
"O recurso do pseudônimo tinha a vantagem de não expor Rivail numa época em que, embora a heterodoxia religiosa fosse tolerada, sempre se corria riscos", explica Mary Del Priore, doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) e autora de Do Outro Lado - A História do Sobrenatural e do Espiritismo (Planeta, 2014).
Kardec levou quase dois anos para concluir O Livro dos Espíritos. Em momento algum, se considerou o "autor" da obra. Na melhor das hipóteses, era apenas seu organizador. Não por acaso, a folha de rosto da primeira edição estampava a frase: "Escrito e publicado conforme o ditado e a ordem de espíritos superiores".
O Livro dos Espíritos, lançado em 1857, em apenas dois meses vendeu todos os 1.500 exemplares da primeira tiragem. Três anos depois, uma segunda edição, revista e ampliada de 501 perguntas e respostas para 1.019, chegou às livrarias.
Religiosidade sem vínculos
Não demorou muito para o espiritismo kardecista cruzar o Atlântico e desembarcar no Brasil, onde Kardec conquistou inúmeros "aliados". Dois dos mais importantes são o educador francês Casimir Lieutaud, que traduziu para a língua portuguesa, em 1860, Os Tempos São Chegados, a primeira obra espírita impressa no Brasil, e o jornalista brasileiro Teles de Menezes, que fundou, em Salvador, o primeiro centro espírita do Brasil.
"Por sua inteligência, bom senso extraordinário e alma caridosa, quem merece o título de 'Allan Kardec brasileiro' é o Bezerra de Menezes", aponta Marta Antunes Moura, vice-presidente da Federação Espírita Brasileira (FEB), referindo-se ao "médico dos pobres".
Outro nome de destaque na consolidação do espiritismo no Brasil é Francisco Cândido Xavier, o Chico Xavier. Em 1932, aos 22 anos, lançou seu primeiro livro, Parnaso de Além-Túmulo, antologia de 259 poemas assinados por nomes como Castro Alves, Olavo Bilac e Augusto dos Anjos.
Até 2002, quando morreu aos 92 anos, psicografou 459 títulos - e doou os direitos autorais de todos eles, com registro em cartório, para obras assistenciais - e 10 mil cartas - algumas delas chegaram a ser aceitas como prova em tribunais.
"Inspirado na noção de santidade católica, Chico Xavier adotou votos monásticos como modelo de conduta e espiritualidade. Essa construção do estilo brasileiro de ser espírita, marcadamente católico, é o que chamo de espiritismo à brasileira", explica Sandra Stoll, doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (USP).
Dados do último Censo apontam que, entre 2000 e 2010, o número de espíritas no Brasil cresceu 65%, passando de 2,3 milhões, algo em torno de 1,3% da população, para 3,8 milhões, cerca de 2%. Mas, se o número de fiéis é de 3,8 milhões, o de simpatizantes, segundo a FEB, pode chegar a 30 milhões. Muitos não se assumem como espíritas porque são católicos ou porque não enxergam o espiritismo como religião.
"Há também aqueles que vão aos centros atrás de alívio para alguma aflição pontual. É o que chamamos na sociologia de 'religião de clientela', um tipo de religiosidade de serviço que não cria vínculos. A doutrina espírita não está preocupada em fazer proselitismo ou converter ninguém. Está interessada apenas em fazer o bem e praticar a caridade”, define o sociólogo Reginaldo Prandi, da USP.
(Fonte: BBC News - Brasil)
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