Santa Lúcia: Prefeitura tenta tomar posse da unidade após decretar intervenção

Na última sexta-feira, o prefeito Johnny Maycon, a secretária de Saúde, Nicolle Cipriano, e o subsecretário de Saúde Mental, Felippe Schenquel, estiveram na clínica para tentar assumir a casa
terça-feira, 18 de maio de 2021
por Christiane Coelho (Especial para A VOZ DA SERRA)
(Foto: Arquivo AVS)
(Foto: Arquivo AVS)

No último fim de semana, o assunto que tomou conta das redes sociais e das ruas de Nova Friburgo foi a intervenção feita, por decreto municipal da Casa de Repouso Santa Lúcia, além da não renovação do contrato para prestação de serviço de internação psiquiátrica para pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS). O anúncio foi feito nas redes sociais da prefeitura na tarde da última sexta-feira, 14. Em vídeo, o prefeito Johnny Maycon disse que a prefeitura assumiria a administração da clínica por um período de 180 dias e faria a desinstitucionalização dos pacientes internados, através da aplicação de residências terapêuticas. Tudo respaldado por recomendação do Ministério Público Estadual (MPRJ).

No final da tarde de sexta- feira, o prefeito Johnny Maycon, a secretária de saúde, Nicolle Cipriano, o subsecretário de Saúde Mental, Felippe Schenquel, acompanhados de policiais militares foram até a Santa Lúcia para tentar assumir a administração da clínica. De acordo com o diretor da Casa Santa Lúcia, Dermeval Barboza Moreira Neto, tanto ele, como os funcionários foram surpreendidos com a chegada da equipe. “Por estarem sem ordem judicial, o advogado da instituição conseguiu impedir a entrada. Agora aguardamos a decisão judicial”, revelou Dermeval.

Em nota, a prefeitura informou “de posse do decreto, a equipe chegou por volta das 16h30, e os administradores da clínica não permitiram a entrada, o que perdurou até o anoitecer. Mesmo com a prerrogativa de adentrar à clínica e intervir, de fato, naquela mesma tarde, seria necessária utilização da força policial que acompanhava a ação, já que não houve consenso por parte da clínica. A equipe então optou por uma saída mais técnico-jurídica orientada pela Procuradoria-Geral, para evitar que os pacientes fossem expostos a qualquer tipo de estresse no local. Os trâmites legais tiveram continuidade nesta segunda-feira, 17, para que o decreto seja cumprido.

Repercussão entre familiares dos internos

A Casa de Saúde Santa Lúcia funciona há mais de 50 anos na RJ-116, altura do distrito de Mury, abrigando pacientes psiquiátricos encaminhados para internação. Hoje, são aproximadamente 160 internos e cerca de 80 funcionários que trabalham no local. Muitos internautas, entre eles parentes dos internos e funcionários, se manifestaram contrários a municipalização da clínica, na postagem da prefeitura. Eles elogiam a importância do trabalho feito no local e também a forma como os internos são tratados. 

“Que triste! Quanta instabilidade e estresse estão sendo gerados com essa ameaça à clínica Santa Lúcia. Certamente não existe a menor preocupação com os pacientes. A clínica deve continuar como está, com a dedicação e o amor dos profissionais que lá trabalham. É um crime o que estão tentando fazer!”, escreveu um internauta. “Nunca foi manicômio. É uma clínica familiar.  Tratam todos com carinho, tanto que meu irmão sempre quer voltar.”, disse outra pessoa na página da Prefeitura no Facebook.

Para a prefeitura, intervenção atende à lei federal e recomendação do MP

No vídeo publicado nas redes sociais da Prefeitura de Nova Friburgo, Johnny Maycon alegou que a intervenção é uma resposta à recomendação do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ) e o cumprimento da lei federal que pede a extinção manicomial. “A recomendação do MP foi ignorada por gestões passadas. “Adotaremos uma nova abordagem no trato da saúde mental, com a criação de residências terapêuticas, espaços que promovem a efetiva reintegração de pessoas com deficiência (PcD) à sociedade”, disse o prefeito.

Johnny Maycon falou sobre a representação do MPRJ em novembro de 2019, através da qual foram proibidas novas internações na unidade. De acordo com o documento apresentado no vídeo, o órgão recebeu denúncias de que os internos estariam sendo negligenciados, diante da aplicação inadequada de medicamentos, alimentação e falta de higiene, assim como a possível ocorrência de agressões físicas e psicológicas. Ainda segundo as apurações, equipes técnicas vistoriaram o local várias vezes e constataram, além destas, a manutenção de internos em condições de receber alta clínica para acompanhamento domiciliar. 

Ele também disse que o MPRJ apontou irregularidades nas instalações, como extintores vencidos, rachaduras na cozinha, máquinas na lavanderia sem proteção e com fiação exposta, mofo no teto da sala de descanso dos enfermeiros, cozinha sem vedação contra vetores, banheiro dos enfermeiros sujo, com mofo e rachaduras no teto, além de inúmeras outras desconformidades. 

Na ocasião, além de Nova Friburgo, os municípios de Bom Jardim, Cachoeiras de Macacu, Carmo, Cantagalo, Cordeiro, Duas Barras, Guapimirim, Macuco, Petrópolis Santa Maria Madalena, São José do Vale do Rio Preto, São Sebastião do Alto, Sumidouro, Teresópolis e Trajano de Moraes foram notificados para que “criem suas respectivas redes de atenção psicossocial (RAPS), de modo a garantir um atendimento humanizado, dentro dos parâmetros da legislação em vigor, visando a efetiva implementação do projeto de desinstitucionalização”. 

MPRJ fez nova recomendação em 2021

Ainda no vídeo o prefeito disse que neste ano, já na sua gestão, o MPRJ fez nova recomendação ao município. Nele, o órgão afirmou que “a Clínica de Repouso Santa Lúcia tem dificultado o acesso das equipes de saúde mental às suas dependências, inviabilizando a elaboração dos projetos terapêuticos singulares (TPS), não havendo um trabalho consistente, voltado para a recuperação do paciente, desde a admissão até a alta, de forma que este possa ser reintegrado à sociedade e à família, bem como não volte a necessitar de internação”. 

E prosseguiu: “A Casa de Repouso Santa Lúcia é pessoa jurídica de direito privado conveniada ao SUS e, portanto, submetida às normas insertas no ordenamento jurídico, de modo especial as diretrizes da Política Nacional de Saúde Mental, mas vem, há anos, se omitindo em corrigir falhas constatadas no serviço e em providenciar a desinstitucionalização dos pacientes internos de longa permanência”.

Diante dessa e de outras evidências, o MPRJ recomendou ao prefeito Jhonny Maycon, que promova intervenção na Santa Lúcia, na forma do artigo 15, inciso XIII da lei federal 28.080 de 19 de setembro de 1990, mediante ocupação temporária do seu prédio, bens e serviços correspondentes, prestados e existentes na pessoa jurídica, utilizando dos recursos humanos e materiais de que se lá dispõe, bem como equipamentos móveis e instalações necessárias ao seu funcionamento, visando concluir o processo de desinstitucionalização de seus pacientes, com seu encaminhamento à RAPS de seu município de origem”. 

A secretária de Saúde, Nicolle Cipriano também participou do vídeo. “Sabemos que um paciente em manicônio não é mais permissivo nos dias de hoje. Atualmente a gente visa uma assistência habitada, as Residências Terapêuticas, de modo a reinserir aqueles que têm condições à sociedade. Nosso objetivo é dar a melhor assistência a todos que estão lá, com um projeto terapêutico e um tratamento com mais dignidade”, afirmou a secretária.

Felippe Schenquel, subsecretário de Saúde Mental de Nova Friburgo disse que “o que iremos promover a partir de hoje é dignidade no tratamento de pessoas que nada fizeram, mas que permanecem por 10, 20, 30 anos. Essa é uma luta técnica da Saúde, sobretudo da Saúde Mental, e tenho certeza que isso é um avanço para que Nova Friburgo, assim como Carmo, Vassouras e Três Rios, passe a implementar as Residências Terapêuticas e a trazer dignidade no tratamento à pessoa com deficiência”, resumiu ele.

Funcionários passarão a receber por RPA 

De acordo com a notícia divulgada no site da prefeitura, com o decreto 995, de 14 de maio de 2021, a prefeitura passa a administrar a clínica Santa Lúcia. “Nesse primeiro momento, de forma a valorizar os profissionais e minimizar os impactos da mudança de administração, os cerca de 80 funcionários da unidade serão mantidos pela municipalidade, através de contratos por Recibo de Pagamento Autônomo (RPA)”, disse a nota. 

A nota informa também que “os internos da Clínica Santa Lúcia passarão a receber o atendimento adequado, respeitando os princípios do Movimento da Luta Antimanicomial, celebrado hoje, 18,  que combate a ideia de que se deve isolar a pessoa com sofrimento mental em nome de pretensos tratamentos, algo baseado apenas nos preconceitos que cercam a doença mental. O Movimento da Luta Antimanicomial faz lembrar que, como todo cidadão, essas pessoas têm o direito fundamental à liberdade, o direito a viver em sociedade, além do direito a receber cuidado e tratamento sem que para isto tenham que abrir mão de seu lugar de cidadãos.” 

A nota ainda diz que, “para isso a Prefeitura de Nova Friburgo não precisará investir um centavo sequer. Tudo é financiado e mantido pelo Governo Federal. Tanto o aluguel das Residências Terapêuticas, quanto o benefício que é pago diretamente a cada “interno”, que utiliza a verba da forma que quiser, sempre prestando conta do que foi gasto.”

O que é a desinstitucionalização da pessoa com deficiência?

A desinstitucionalização e efetiva reintegração de pessoas com deficiência (PcD) na comunidade é uma tarefa a que o Sistema Único de Saúde (SUS) vem se dedicando com especial empenho nos últimos anos. Juntamente com os programas 'De volta para casa' e 'Programa de Reestruturação dos Hospitais Psiquiátricos', o 'Serviço Residencial Terapêutico' (SRT) vem concretizando as diretrizes de superação do modelo de atenção centrado no hospital psiquiátrico. 

As residências terapêuticas constituem-se como alternativas de moradia para um grande contingente de pessoas que estão internadas há anos em hospitais psiquiátricos por não contarem com suporte adequado na comunidade. Além disso, essas residências podem servir de apoio a usuários de outros serviços de saúde mental, que não contem com suporte familiar e social suficientes para garantir espaço adequado de moradia. 

Temos hoje, no Brasil, um grande número de potenciais beneficiários destas residências, alguns exemplos bem próximos de Nova Friburgo, como é o caso de Carmo, que adotou as Residências Terapêuticas e tem servido como exemplo para o setor de Saúde Mental da Secretaria Municipal de Saúde.

Como funcionam as Residências Terapêuticas?

O Serviço Residencial Terapêutico (SRT) – ou residência terapêutica são casas localizadas no espaço urbano, constituídas para responder às necessidades de moradia de pessoas portadoras de transtornos mentais graves, institucionalizadas ou não. O número de usuários pode variar desde um indivíduo até um pequeno grupo de, no máximo, oito pessoas, que deverão contar sempre com suporte profissional sensível às demandas e necessidades de cada um. 

O suporte de caráter interdisciplinar (seja o Centro de Atenção Psicossocial (Caps) de referência, seja uma equipe da atenção básica ou outros profissionais deverá considerar a singularidade de cada um dos moradores, e não apenas projetos e ações baseadas no coletivo de moradores. O acompanhamento a um morador deve prosseguir, mesmo que ele mude de endereço ou eventualmente seja hospitalizado. 

O processo de reabilitação psicossocial deve buscar de modo especial a inserção do usuário na rede de serviços, organizações e relações sociais da comunidade. Ou seja, a inserção em uma Residência Terapêutica é o início de um longo processo de reabilitação, que deverá buscar a progressiva inclusão social do morador. Ou seja, a pessoa continua sendo assistida e tendo assistência 24 horas por dia, no entanto, é livre como qualquer outro cidadão.

  • Dermeval Neto, diretor da clínica Santa Lúcia

    Dermeval Neto, diretor da clínica Santa Lúcia

  • Felippe Schenquel, gerência de Saúde Mental

    Felippe Schenquel, gerência de Saúde Mental

  • Nicolle Cipriano, secretária de Saúde

    Nicolle Cipriano, secretária de Saúde

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