Quem foi o homem que proclamou a República antes do Marechal Deodoro

Ao usar as publicações do seu jornal para falar da inclusão do ex-escravizado à população liberta, Patrocínio desagradou o governo e acabou exilado
sexta-feira, 18 de novembro de 2022
por Jornal A Voz da Serra
(Foto: Acervo Commons/Uol)
(Foto: Acervo Commons/Uol)

Muitas histórias são contadas sobre a proclamação da República do Brasil — todas elas com personagens brancos ilustres —, ocorrida em 15 de novembro de 1889, sob a liderança do Marechal Deodoro da Fonseca. Mas a maioria dos livros omite a participação igualmente protagonista que diversos negros tiveram em momentos importantes de nossa história. 

Neste 15 de novembro de 2022, o site Ecoa lembra um desses personagens que, segundo relatos de alguns historiadores, foi quem tomou a iniciativa, antes do Marechal Deodoro, de proclamar a República. Ele era um jornalista negro e se chamava José do Patrocínio.

Além de jornalista, Patrocínio era escritor e farmacêutico. Na época da proclamação também era vereador. De acordo com o livro “1889”, do jornalista Laurentino Gomes, foi ele quem tomou a iniciativa de proclamar a República, por volta das 18h, perante um grupo reunido na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, enquanto o Marechal ainda elaborava a mudança de regime.

O livro conta que Deodoro estava doente, destituiu o ministério e promoveu um desfile de tropas pela capital demonstrando um levante militar. No entanto não proclamou o novo regime. Ainda segundo a publicação, no calor do momento da revolta, o escritor e político Aníbal Falcão foi até o jornal de Patrocínio para que fosse escrita uma moção pública abolindo a monarquia. Foi esse documento que ele leu no plenário da Câmara e que colocou fim à monarquia. Mas a importância deste homem para o Brasil é ainda maior do que essa participação e mudaria o curso de nossa história. Saiba aqui um pouco mais sobre ele.

Meio livre, meio escravizado

José do Patrocínio nasceu em 1853, em Campos dos Goytacazes (RJ), do ato violento de um vigário branco, o cônego João Carlos Monteiro, contra uma jovem escravizada de 15 anos de idade, Justina Maria do Espírito Santo. Como era comum acontecer, não foi assumido pelo pai, que o enviou para crescer como homem livre em uma de suas fazendas.  

Já no Rio, teve acesso a boas escolas públicas e com a ajuda do professor João Pedro de Aquino, entra para Faculdade de Medicina, no curso de Farmácia, formando-se em 1874. Para sobreviver, entretanto, começou a dar aulas particulares. 

Foi em uma dessas aulas que conheceu a futura esposa, Maria Henriqueta, filha de militar que frequentava o Clube Republicano, entidade que apoiava a adoção de uma República em lugar ao regime monárquico. Se casaram, tiveram 4 filhos: Marieta, Maceu, Job e José Carlos do Patrocínio Filho, que também se tornou jornalista. Durante toda a vida, o casal recebeu ataques públicos racistas pela cor da pele de Patrocínio.

Para o historiador Henry Guimarães, professor da Universidade Federal da Grande Dourados (MS), ele representa a contradição da sociedade brasileira, uma vez que era livre, mas jamais integrou a sociedade como os brancos devido à sua cor.

Tigre da Abolição

Dono de uma retórica envolvente, Patrocínio conseguia prender a atenção de grandes multidões quando falava e, como já escrevia para o jornal Gazeta de Notícias, um dos maiores da época, pediu um empréstimo ao pai de sua esposa, o militar Emiliano Rosa de Sena, e comprou o jornal, assumindo uma luta pública contra a escravidão. De acordo com a Enciclopédia Negra, publicação com biografias afro-brasileiras (Companhia das Letras), Patrocínio reuniu ao seu redor um grupo de jornalistas e oradores que, ao lado do engenheiro André Rebouças, deu origem à Confederação Abolicionista, em 1880. 

Esta agremiação ajudou a manter vivo o quilombo do Leblon e, por meio de comícios em teatros e manifestações em praça pública, financiou e acolheu escravizados fugitivos. Logo, a redação do jornal servia como sede da Confederação e coordenou as ações da luta abolicionista que se espalhava no território nacional. Por essa atuação, ficou conhecido como o Tigre da Abolição.

Apoiador ou opositor?

José do Patrocínio provocou dúvida em seus apoiadores ao beijar as mãos da Princesa Isabel quando a Lei Áurea foi assinada. "Acredita-se que ele ficou muito feliz em ter conquistado a assinatura da lei pela qual tanto lutou, mas isso não foi bem-visto na época", explica Guimarães. Isso porque Patrocínio era vereador quando a lei foi assinada, e causou a impressão de estar a favor da monarquia.

Nos anos seguintes, o jornalista se empenhou em usar as publicações do seu jornal para falar da inclusão do ex-escravizado à população liberta, o que não tinha sido detalhado ou contemplado na Lei Áurea. Com isso, firmou sua oposição ao governo e acabou exilado na Amazônia. Por volta de 1893, retornou ao Rio de Janeiro, encerrou as atividades do jornal e levou a mãe, então livre, para viver com ele.

Segundo o historiador, durante uma apresentação sobre os direitos dos animais, já tuberculoso, Patrocínio passou mal, e o discurso, que tratava dos maus tratos que os animais sofriam ao serem usados como meio de transporte, nunca foi concluído.

Carros, aviões e ABL

Em uma viagem à Europa, José do Patrocínio conheceu carros e aviões. Progressista, ele gostava de inovações tecnológicas e trouxe ao Brasil um dos primeiros carros de que se tem notícia. O jornalista também tentou construir um balão dirigível, o Santa Cruz, para demonstrar sua admiração ao pai da aviação, Santos Dumont, mas o veículo nunca levantou voo. 

José do Patrocínio foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, onde ocupou o assento nº 21. Faleceu aos 51 anos no dia 30 de janeiro de 1905.

Senhor por parte de pai, escravo por parte de mãe

Orador incansável, Patrocínio se transformou em ícone na campanha abolicionista, intensificando os ataques à política escravocrata, em seu jornal Cidade do Rio. Mas ele não se limitou a lutar com palavras. Foram 10 anos de militância incansável na ajuda para a fuga de muitos escravos, organização de núcleos abolicionistas, fundação (com André Rebouças) da Confederação Abolicionista, para unir todos os clubes e associações de luta contra a escravidão no país, viagens pelo Nordeste, até o que considerou o triunfo da causa, a assinatura da Lei Áurea em 13 de maio de 1888.

A proclamação da Abolição, em 1884, no estado do Ceará, quatro anos antes do restante do país, é creditada à sua articulação política. A mãe de Patrocínio morreu em 18 de agosto de 1885, sem ver chegado o dia da liberdade para os escravizados.

Mesmo assim, Patrocínio não esmoreceu. Em janeiro de 1886, foi um dos candidatos da Confederação Abolicionista à Câmara Municipal do Rio de Janeiro e saiu vitorioso. Em 3 de maio, junto com Rui Barbosa, discursa para uma multidão pela libertação das pessoas escravizadas. Cinco dias depois, o ministro Rodrigo Silva apresenta ao Parlamento o projeto final da Abolição.

E no domingo, dia 13 de maio de 1888, Patrocínio, Joaquim Nabuco e André Rebouças levam a Lei Áurea às mãos da princesa regente, para que seja assinada. Assim, chega ao fim, na visão dos abolicionistas, a luta pela liberdade do povo negro.

“Se toda a propriedade é roubo, a propriedade escrava é um roubo duplo, contrária aos princípios humanos que qualquer ordem jurídica deve servir.”

Palavras que, mais que retórica inflamada, resumem a vida do abolicionista: senhor por parte de pai, escravo por parte de mãe, vivera na pele todas as contradições da escravatura. (Fonte: https://www.uol.com.br/ecoa/) 

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