O que a negritude de Machado de Assis diz sobre como Brasil lida com racismo

O maior escritor brasileiro era mulato, filho de pai pardo, alforriado, e mãe branca
sexta-feira, 22 de novembro de 2024
por Jornal A Voz da Serra
(Foto: Reprodução Web)
(Foto: Reprodução Web)

A figura de Machado de Assis, um dos maiores ícones da literatura brasileira, simboliza de maneira inequívoca as contradições do racismo no Brasil. Negro e criado em meio à profunda desigualdade social do século 19, Machado alcançou um espaço majoritariamente branco, mas sua identidade racial foi muitas vezes silenciada ou minimizada pela história oficial.

Por exemplo, assinada pelo escrivão Olympio da Silva Pereira, a certidão de óbito de Joaquim Maria Machado de Assis, morto aos 69 anos, em 29 de setembro de 1908, traz uma informação curiosa, senão polêmica: de que sua cor era "branca".

Sobretudo nos últimos anos, a questão racial daquele que é considerado o maior escritor brasileiro de todos os tempos tem se tornado uma bandeira importante para a afirmação e a valorização da população negra.

Mas o que pesquisadores contemporâneos têm descoberto é que, considerando documentos como a própria certidão de óbito e cartas antigas, a identidade racial de Machado de Assis é um assunto polêmico desde antes da morte dele. O que leva a uma questão importante: como o próprio Machado de Assis se identificava?

"Nós não sabemos até o momento. Não há nenhum documento que tenha chegado até nós que traga essa informação, como o próprio Machado se identificava, como ele se via. Temos depoimentos só de terceiros", disse à BBC News Brasil a historiadora Raquel Machado Gonçalves Campos, professora na Universidade Federal de Goiás (UFG) e pesquisadora da vida e obra do escritor.

Um dos documentos citados por ela é a carta enviada pelo poeta Gonçalves Crespo (Rio, 1846 / Lisboa, 1883) a Machado, com data de junho de 1871.

"A Vossa Ex., já eu conhecia de nome há bastante tempo. De nome e por uma certa simpatia que para si me levou quando me disseram que era… de cor como eu", diz trecho da correspondência. 

Não se sabe como o escritor brasileiro reagiu ao ler a missiva, tampouco se conhece qualquer resposta que ele tenha eventualmente redigido de volta ao poeta. A professora Campos lembra que a expressão "de cor" era a mais aceita naquele momento histórico para descrever pessoas negras.

"[O relevante é que] Machado é visto como um homem ‘de cor’ por um escritor de seu próprio tempo", ressaltou.

Filho de um descendente de escravos alforriados, Francisco José de Assis, e de uma lavadeira portuguesa oriunda dos Açores, Maria Leopoldina Machado da Câmara, o escritor foi fotografado algumas vezes — mas a baixa qualidade das imagens e o fato de serem em preto e branco, dadas as limitações técnicas da época, ainda hoje suscitam debates sobre qual seria a real cor de sua pele.

Despolitizaram as obras de Machado

Além da tentativa de embranquecer a aparência física de Machado de Assis, há um fenômeno ainda mais marcante: o branqueamento de sua atuação política. Por muito tempo, o escritor foi visto como alguém que compactuava com as classes dominantes da época, além de não se posicionar contra a escravidão e ignorar a realidade da população negra no Brasil, embora essa lhe tocasse diretamente.

Nas últimas décadas, porém, vem ganhando força uma leitura que considera, entre outras questões, sua condição de homem negro, livre, letrado, filho de pai alforriado e politicamente atuante em uma sociedade escravocrata. 

Dessa forma, embora não esteja presente em sua obra literária uma voz assumidamente negra (ao contrário de outros escritores negros que foram seus contemporâneos, como Luiz Gama ), Machado não aderiu ao discurso da branquitude. Ao contrário, sendo muito crítico e usando da ironia para expor suas opiniões sobre a hipocrisia da burguesia na época.

A professora e historiadora Ana Flávia Magalhães Pinto, em um seminário na ABL, afirmou: “Machado de Assis, ao longo de sua trajetória, fez-se um grande apoiador de outros homens de cor como ele. Uma forma de desqualificar a postura de Machado em relação à ascendência africana é justamente dizer que ele teria se afastado de suas origens, que não teria se envolvido com os debates acerca dos destinos dos africanos e descendentes no Brasil”. E cita a presença de José do Patrocínio em seus textos, agradecendo a participação de Machado de Assis nas lutas abolicionistas.

Essas práticas de embranquecimento não apenas distorceram a realidade da herança racial de Machado de Assis, mas também subestimaram a significância de sua identidade afrodescendente em suas realizações. Nos mais de 500 anos de descobrimento do Brasil, Machado é mais um gigante que teve sua identidade racial apagada.

(Fontes: BBC News e Mídia Ninja)

 

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