Mais que os reconhecidos atributos de visionário, humanista e conciliador, já tão falados sobre o Monsenhor Mielli (LEIA REPORTAGEM SOBRE ELE AQUI), outras duas qualidades merecem ser lembradas sobre um dos líderes religiosos mais admirados, amados e respeitados de Nova Friburgo: a humildade que externava desde os gestos mais nobres até os mais simples e sua paixão por hobbies de vanguarda na sua época, como o radioamadorismo.
"Seu código era o PY1MHV, me lembro até hoje. Até os radioamadores mais jovens de Friburgo, que não conviveram com ele, o têm como referência até hoje", comenta Orlando Mielli Jr., sobrinho de Monsenhor Mielli.
"Se estivesse vivo, ele seria um idoso altamente conectado, com internet, celular moderno, seguidor de todas as redes sociais... E ainda explorando todas as novidades do mundo tecnológico", atesta Rita de Cássia Fernandes de Oliveira, a Dona Cassina, de 91 anos, que trabalhou como secretária do Colégio Nossa Senhora das Graças e do próprio Monsenhor Mielli por 25 anos, nas décadas de 60 a 80.
Bênção papal por rádio antes de morrer
O jornalista Girlan Guilland, morador de Olaria e pai de dois ex-alunos do Colégio Nossa Senhora das Graças, conta que, sobre o fato de Monsenhor Mielli ser radioamador, existe um relato fantástico do próprio irmão do religioso, Orlando Mielli, e confirmado por seu Jair, que foi zelador da escola por muitos anos e na época era sacristão. Ambos afirmam que o Monsenhor vinha tentando há vários dias um contato com o Papa (na época Paulo VI) através do rádio e conseguiu exatamente por volta das 6h da manhã daquela quarta-feira, 13 de março de 1979, dia de sua morte. Ele recebeu a bênção papal momentos antes de sofrer um infarto fulminante.
Banho de cachoeira e "vinho do padre"
Mas vem do médico oftalmogista friburguense Dirceu Badini outro relato, dos mais comoventes, sobre essas facetas do monsenhor, que A VOZ DA SERRA reproduz, literalmente, a seguir:
"Meu primeiro contato com uma das melhores pessoas com quem já convivi, foi em caráter profissional. Procurou-me para prescrever novas lentes para seus óculos e de cara foi logo rasgando:
– Estou aqui para fazer lentes Varilux e quero adiantar que meu grau é muito difícil!
Isto para um cara que estava iniciando sua vida profissional numa cidade estranha e atender uma pessoa da sua importância; lentes multifocais estavam sendo lançadas, cheias de aberrações e adaptação ainda hoje difícil para alguns clientes, era de arrebentar.
Algum tempo depois, interessei-me pelo radioamadorismo, incentivado por um outro cliente que se ofereceu uma demonstração na sua casa. E quem estava na “rodada”? Monsenhor Mielli que me fez elogios como profissional e queria ajudar-me no que fosse possível para que eu me tornasse um “PY”. Foi por aí que nos tornamos íntimos e irmãos.
Encontrávamos todas as semanas, ora ele vindo, à noitinha em minha casa e eu, eventualmente, o visitando na casa paroquial, em Olaria. Muita conversa, muita descontração, trabalhos técnicos de eletrônica na manutenção dos aparelhos e antenas e sempre uma dose de vinho de padre, como ele se referia ao vinho que invariavelmente nós tomávamos. Jamais ele iniciava um papo sobre religião, a não ser que partisse de mim a iniciativa e não era tão infrequente esse papo. Ninguém tentando convencer o outro das suas tendências. Respeito mútuo.
Tempos depois nós gastamos alguns fins de semana juntos. Geralmente ele me acompanhava em algumas viagens à roça, mas a que mais marcou minha memória foram uns dias que passamos numa fazenda em Pirapetinga.
Isa tinha uma amiga cujo pai era proprietário de uma fazenda e a sede ficava situada numa ilha formada pelo rio Pirapetinga. Fomos para lá uns dois amigos radioamadores, Mons. Mieli e minha família. Eu e o Rhony passávamos parte do dia pescando num dos braços do rio enquanto Levindo e Monsenhor ficavam, na maior parte do seu tempo em contatos com o mundo pelo código Morse, aproveitando a área sem nenhuma estática existente por demais nas cidades.
À tarde, invariavelmente, a criançada e Isa iam para um banho de rio nas cachoeiras aos montes existentes ali perto onde o rio esbarrava nas pedreiras, desviando-se de algumas e saltando sobre muitas outras impossíveis de contornar.
Eu estava voltando de uma pescaria com alguns piaus e bagres pendurados numa fieira e me deparei com uma cena nunca vista: Mons. Mieli de calção, pernas mais do que brancas, chinelos, toalha grossa de banho enrolada ao pescoço, molhado, lentes dos óculos salpicadas de água, cabelos desalinhados e também molhados e com uma feição de alegria, de encantamento, com uma cara de moleque safado e vermelho com a exposição ao sol naquela pele branquíssima. Quando me viu, já de longe abriu os braços, falando e sorrindo ao mesmo tempo:
– Badini! Que coisa maravilhosa é um banho de cachoeira!
Eu não acreditava. Não sabia o que falar. Fiquei certo tempo pasmo, olhando e somente com um sorriso amarelo para ele, desbundado e demorei a arriscar uma pergunta cuja resposta eu não deseja ouvir no modo negativo:
– O senhor nunca tomou um banho de rio, Monsenhor?
– Não! Esta é a primeira vez! Fui muito cedo para o Seminário e…
Eu continuava não acreditando que uma criança, como ele fora, nunca tivesse entrado num rio para tomar banho, escorregar pedra abaixo, enfiar a mão numa loca para puxar um cascudo, bagre ou mais que houvesse lá dentro; brincar de pique dentro do poço ou bater uma bola no areão, pintar o sete. Ele falava, falava e eu nem ouvia. Sentia sim, uma tremenda pena daquele meninão à minha frente desprovido de infância. Eu não tinha como entender aquilo. Se não fosse dito por ele, eu não acreditaria.
Nosso último encontro foi no meu consultório logo após um carnaval. Ele ia passar o feriado na fazenda de meu pai, mas por doença de pessoa da sua família, cancelou a viagem. Eu já estava lá providenciando antenas e outros badulaques para o rádio que era seu companheiro nessas aventuras
Procurou-me na clínica e estava abatido. Visivelmente abatido, cansado. De princípio, achei que deveria ser pela doença do parente já restabelecido, soube depois. Estava preocupado com a situação do colégio de cujos problemas debatemos, mas não vêm ao caso. Estava visivelmente deprimido e para tentar levantá-lo um pouco, disse:
– Pare de trabalhar e se preocupar tanto, homem de Deus! Já fez mais do que precisava e, garanto, quando eu for Papa canonizo-o no dia seguinte! Sua vaga tá garantida!
Ele deu uma sonora gargalhada que ainda hoje se mantém viva na minha memória e disse as suas últimas palavras ouvidas por mim:
– Esse Badini não tem jeito, não!
Não consegui vê-lo morto. Preferi guardar algumas imagens dele vivo como algumas poucas que eu acabei de relatar. Pena eu não ter qualidades literárias para colocar no papel o que eu realmente sinto e o que foi o enorme ser humano Monsenhor Mielli."
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