A (falsa) história sobre a origem da cachaça

A versão da elite brasileira sobre o consumo de álcool por parte dos escravos é apresentada de maneira ambígua e distorcida
sexta-feira, 13 de setembro de 2024
por Jornal A Voz da Serra
(Foto: Freepik)
(Foto: Freepik)

A história da origem da cachaça está cercada de mistérios, lendas e relatos improváveis. Há uma versão falsa sobre a origem do destilado, muito divulgada principalmente na internet, que assume também um significado fantasioso para as palavras ‘pinga’ e ‘aguardente’.

Diz a lenda que os escravos ao produzirem açúcar, cansados de tanto mexer o caldo de cana no fogo, um dia pararam para descansar e a mistura desandou. Temendo as consequências, guardaram aquele melado longe das vistas do feitor. No dia seguinte, para sua surpresa, viram que o líquido havia fermentado, ficando levemente alcoólico e azedo. Ao colocarem novamente no fogo com mais caldo de cana, o vinho evaporou e condensou nos tetos da senzala, formando goteiras que pingavam constantemente na forma de um líquido incolor e de alto teor alcoólico: o chamaram de pinga.

A bebida que pingava e caía nos corpos machucados dos escravos ardiam nas feridas como uma água ardente ou… aguardente. De suas cabeças escorriam até as bocas, quando percebiam que aquela ‘água’ os deixavam mais animados e alheios às condições desumanas em que viviam.

Eles conheciam as bebidas fermentadas

Apesar de ser uma das versões mais difundidas sobre a origem da cachaça, como toda boa lenda, a história está repleta de relatos falsos. A versão da  elite brasileira sobre o consumo de álcool por parte dos escravos é apresentada de maneira ambígua e distorcida, ora assumindo a cachaça como antídoto e fuga do cotidiano opressor, ora tendo seu consumo proibido por servir como incentivo à rebeldia.

Na verdade, o que se sabe é que os africanos tinham conhecimento sobre fermentação e que o consumo de bebidas alcoólicas sempre esteve associado às práticas culturais, religiosas e hedonistas de muitas tribos.

Inclusive, há registros do século XVII que descrevem que os escravos na Bahia já fermentavam os derivados da produção do açúcar de maneira consciente para consumo do vinho de cana. 

Até hoje, em Paraty (RJ), é costume dos mais velhos beber o mucungo, palavra de origem africana para designar o caldo fermentado da cana. Portanto, ao contrário do citado acima, não seria uma surpresa a transformação do caldo de cana em bebida alcoólica fermentada de efeitos inebriantes.

O caldo de cana é rico em açúcar o que facilita sua fermentação espontânea. A origem da cachaça não foi uma surpresa, mas uma produção premeditada.

Papel relevante para a economia

É importante ressaltar que, durante o período colonial brasileiro, a produção de açúcar era uma atividade predominante nas fazendas no litoral brasileiro, e que a produção de cachaça era também uma indústria economicamente importante que utilizavam mão de obra escrava para o cultivo da cana, extração do caldo e produção da bebida.

Os comerciantes europeus levavam a cachaça produzida no Brasil para as regiões costeiras da África, onde ocorria o comércio de escravos. Lá, a bebida era trocada por africanos capturados e escravizados,  transportados para as Américas e vendidos para trabalhar nas plantações, incluindo as produtoras de cachaça.

A origem de cachaça, portanto, foi premeditada como forma de utilizar os subprodutos da indústria do açúcar para produzir a bebida, como parte dessa atividade econômica do Brasil Colônia.

A lenda também peca em explicar o processo de destilação quase como uma intervenção divina. A evaporação do caldo fermentado e posterior condensação nos tetos da senzala é fisicamente improvável. A primeira cachaça teria sido destilada de maneira premeditada em alambiques de barro ou de cobre trazidos pelos colonizadores.

No contexto da produção de bebidas alcoólicas, a destilação em alambiques começou a ganhar destaque na Europa a partir do século XIII. O processo era utilizado para a produção de diversas bebidas destiladas, como o brandy, o gin e outras aguardentes.

A real origem das palavras

A origem da palavra aguardente nada tem a ver com os maus tratos de escravos e é muito mais antiga do que a produção do destilado de cana no Brasil. Ela é um termo genérico para caracterizar bebidas destiladas, como whisky, rum, gim, cognac. 

A palavra teria relação com vuurwater ou acqua ardentes, significando água de fogo. Já a palavra pinga faz referência ao processo de destilação em alambique de cobre, em que o vinho de cana é aquecido na panela e seu vapor é resfriado e condensado lentamente, saindo aos pingos.

Assim, podemos afirmar que essa não foi a origem da cachaça. Então, afinal, quem inventou o destilado brasileiro?

(Fonte: mapadacachaca.com.br/)

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