A robustez poética de Cartola e os versos que Bilac gostaria de ter escrito

“Cartola não existiu, foi um sonho que a gente teve” (Nelson Sargento)
sábado, 05 de dezembro de 2020
por Por Alex Fonte*
(Ilustração: Reprodução Internet)
(Ilustração: Reprodução Internet)

Quando fui convidado, pelo A Voz da Serra, a falar de Cartola, aceitei, claro. Mas a mão que aceitou o convite também recebeu um chicote. Apesar de serem poucas e breves palavras, a figura em questão é coisa séria, forte.

Então, pra facilitar a empreitada, peguei meu sete cordas e fui brincar de tocar as músicas dele, pra ver se vinha aquele clima. Aí que me toquei que falar de Cartola é, na verdade, ouvir a sensibilidade de suas músicas e simplesmente apontar os momentos mais tocantes. 

Aliás, esse é outro grande problema em se tratando do fundador da Mangueira, porque o que mais há em seus sambas é emoção. Sua poesia – e me desculpem os doutos da língua pátria, com a diferença entre as funções dos versos em poesia e em letra musicada - é de magnitude drummondiana, suas letras poderiam ser organizadas em antologias poéticas: sem partitura, o som viria da leitura em voz alta, ou com a voz da alma mesmo.

Refletindo sobre o assunto, tentei me lembrar da primeira vez em que ouvi Cartola. O pior é que me lembrei. Não faz tanto tempo, mas ser tão exato assim, lembrar da primeira audição desse mestre, me deixou orgulhoso de minha memória. 

Aos treze anos, aprendendo os primeiros acordes no violão, comprei uma revista de cifras – e ali continha As Rosas Não Falam. Como tocar se nunca ouvi? Corri atrás de algum CD, a internet não era tão à mão quanto é hoje, e lembro que fiquei perplexo com os versos Devias vir /Para ver os meus olhos tristonhos / E, quem sabe, sonhavas meus sonhos / Por fim. Aquilo bateu feito machado. 

Dali em diante, Cartola tornou-se uma obsessão. A cada música nova, a paixão crescia. Versos como Tu és meu Brasil em toda parte / Quer na ciência ou na arte / Portentoso e altaneiro / Os homens que escreveram tua história / Conquistaram tuas glórias / Epopeias triunfais, em Ciência e Arte, chamavam atenção para a construção bem peculiar, com palavras como portentoso, algo que a gente não fala na feira, mas que pairava na cabeça dos mestres do Olimpo do Samba, um lugar mais conhecido como morro de Mangueira. 

O Mundo é um moinho traz consigo versos que machucam qualquer desavisado, diante da sua robustez poética, como se pode observar aqui: Ouça-me bem, amor / Preste atenção, o mundo é um moinho / Vai triturar teus sonhos tão mesquinhos / Vai reduzir as ilusões a pó. Versos que Bilac gostaria de ter escrito. 

Músicas com outros intérpretes como Ney Matogrosso, Cazuza, Chico Buarque, Zeca Pagodinho, Beth Carvalho, Paulinho da Viola, entre outros, foram me ajudando a formar na cabeça o arsenal de mais de 80 canções, algumas parcerias que são míticas: 

Alvorada (Você também me lembra a alvorada / Quando chega iluminando / Meus caminhos tão sem vida / Mas o que me resta é tão pouco / Ou quase nada, do que ir assim, vagando / Numa estrada perdida / A alvorada), em parceria com Carlos Cachaça e Hermínio Bello de Carvalho, além de O Sol Nascerá (Finda a tempestade / O sol nascerá / Finda esta saudade / Hei de ter outro alguém para amar), com Elton Medeiros, que relegou ao mestre um sucesso absurdo sendo interpretada por Nara Leão, fazendo a ponte do samba e o morro com a zona sul e a bossa nova. 

Com Noel Rosa, o poeta da Vila, Cartola compôs Não faz, amor, (Amar sem jurar é bem raro / O verbo cumprir custa caro / Amor é bem fácil de achar / O que acho mais difícil é saber amar). Em Sim, o poeta foi sagaz, ao alternar a ordem da frase para o encaixe da melodia e, adivinhem..., ficou como ele, divino (Porque é que eu, Senhor / Que errei pela vez primeira / Passo tantos dissabores / E luto contra a humanidade inteira?).

Estar no panteão dos grandes compositores do Brasil não é tarefa das mais simples. Países que podem se orgulhar em ter Tom Jobim, Chico Buarque, Nelson Cavaquinho, Paulinho Viola, cá pra nós e com toda humildade, são poucos. 

E nessa lista o divino Cartola, como era chamado por Lúcio Rangel, é diretor. Após 40 anos de sua passagem, fica fácil concordar com outro parceiro dele, Nelson Sargento (Ciúme Doentio): “Cartola não existiu, foi um sonho que a gente teve”. 

Sonho cada dia mais vivo na memória. 

* Alex Fonte, 34, é professor de História, músico dos Desafetos do Colírio. Portela e Imperatriz de Olaria desde o berço.

 

LEIA MAIS

"O rádio fideliza e o networking que você cria em sua trajetória de vida também"

"O rádio proporciona riquezas e vivências que nenhum dinheiro ou bem material pode comprar"

"Também pus os pés na Rádio Friburgo. Com 8 anos, participava de um programa aos sábados"

Publicidade
CONTINUA DEPOIS DA PUBLICIDADE
Publicidade
Publicidade
Publicidade

Apoie o jornalismo de qualidade

Há 79 anos A VOZ DA SERRA se dedica a buscar e entregar a seus leitores informações atualizadas e confiáveis, ajudando a escrever, dia após dia, a história de Nova Friburgo e região. Por sua alta credibilidade, incansável modernização e independência editorial, A VOZ DA SERRA consagrou-se como incontestável fonte de consulta para historiadores e pesquisadores do cotidiano de nossa cidade, tornando-se referência de jornalismo no interior fluminense, um dos veículos mais respeitados da Região Serrana e líder de mercado.

Assinando A VOZ DA SERRA, você não apenas tem acesso a conteúdo de qualidade, mantendo-se bem informado através de nossas páginas, site e mídias sociais, como ajuda a construir e dar continuidade a essa história.

Assine A Voz da Serra