Sob meus pés, nas botas sujas de poeira e lama, muito mais do que um caminho qualquer. O leito em que serpenteava o trem entre Cachoeiras de Macacu e Nova Friburgo ainda conta história, mata saudade, traz lembrança. É apenas a primeira parte de uma viagem no tempo. Depois, essa aventura continua entre Nova Friburgo e Sumidouro, onde as estações amareladas e precárias e os túneis frios e escuros nos levam, sem parada, a um encantamento da alma, a um florescer do espírito.
Em meio ao silêncio da mata, caminhando com o coração, é possível ouvir na mente saudosa, ou mesmo na imaginação, mas como se fora real, o apito do trem...
Sou caminhante, sou peregrino. Todos os anos, mochila nas costas, cruzo centenas e centenas de quilômetros pelo Caminho de Santiago de Compostela, na Europa. Onze vezes rasguei Espanha, Portugal e França a pé, até a cidade onde está enterrado o primeiro apóstolo de Cristo martirizado – Tiago. Mas as emoções de caminhar pelo antigo leito do trem de nossos antepassados são imbatíveis. É sensação caseira, é flertar com séculos passados, é imaginar um mundo que andava sobre trilhos, em retas e curvas perfeitas.
Lá vou eu subindo a serra. A Estação da Pena surge ainda com a exuberância de uma construção que testemunhou por décadas o ponto de partida de uma subida fantástica em meio à mata fechada. Impossível, ali naquele cenário de aquarela, entre árvores frondosas, flores e frutos, não imaginar a caldeira ardente da Maria Fumaça pronta para invadir a floresta. “Correndo vai pela terra / vai pela serra...”, sintetiza aquele momento o “Trenzinho Caipira” de Villa-Lobos na letra de Ferreira Gullar.
Cada passo, um achado. Na terra úmida ou molhada da serra, banhada por águas cristalinas de fontes e cachoeiras, uma marca que não se apaga: pedaço de trilho, tachões, pregões, parafusos, arruelas, restos de ferro que sobrevivem ao tempo. Basta olhar atentamente para o chão que uma preciosidade dessas surge à sua frente. E mais, muito mais: pontes imensas, toneladas de ferro suspensas sobre o rio, a mata, o nada. Dormentes surgem aqui e ali. Mais à frente, restos de uma construção pertencente à Estrada de Ferro Leopoldina, uma fonte onde os passageiros bebiam água enquanto o trem também era abastecido no Registro, datado de 1919. Mas um pregão sob meus pés, mais uma curva perfeita, mais uma ponte – desta vez todas em blocos de pedra gigantes.
Por cerca de 20 quilômetros, andados em oito horas num caminho hoje bem estreito, engolido por barreiras e vegetação, é fácil imaginar a emoção e o privilégio de quem chegou a Nova Friburgo de trem. Da janela, por certo apreciou a exuberância da natureza, o canto dos pássaros, o céu da montanha que ora surgia nas pequenas clareiras. Chego à terra natal exausto, quase maltrapilho, mas radiante de felicidade. Ainda percorro o trecho final, passando por Theodoro de Oliveira e Mury, antes da chegada à majestosa estação na Avenida Alberto Braune. Ali, uma pena, as marcas desaparecem nas construções desenfreadas e no descarte irregular de lixo e entulho no rio – o cartão de boas-vindas já não é tão belo como outrora.
Mas o caminho continua. Agora, em direção a Sumidouro. E é no trecho de aproximadamente 15 quilômetros entre Dona Mariana e Murineli que o caminhante volta a se surpreender. Diferentemente da serra, aqui é tudo plano – e que plano divinal. Uma vista de tirar o fôlego, entre montanhas e vales a perder de vista. As marcas do trem, desaparecido há tantas décadas, aqui saltam aos olhos a cada passo. Já na saída de Dona Mariana, a velha estação, locais de abastecimento de água, postes de ferro... Dá vontade de cavar o chão, ora duro, ora areado, e encontrar os trilhos que, assim parece, estão ali apenas escondidos pela ação da natureza. “Muita gente aqui ficou rica vendendo os trilhos”, conta o antigo morador. “Foi tudo derretido e virou dinheiro”, arremata.
Não é difícil resvalar nos pequenos, mas preciosos, resquícios de uma época hoje relegada a fotografias amareladas e memória dos mais velhos. Só os chamados pregões, que fincavam os trilhos nos dormentes, encontrei 12 trechos. Mas a maior preciosidade estava à beira do caminho. Dona Maria Branca, 84 anos, perde logo a timidez ao contar histórias deliciosas do tempo do trem. “No dia do meu casamento, o trem chegou lotado de convidados, uma festa”, relembra. “Desde pequenos, meus filhos se encantavam com o trem, que passava aqui em frente de casa”. Dela, recebo de presente o único pregão que guardou quando da retirada dos trilhos. “Se você gosta tanto de trem, isso tem que ser seu”, diz, ao me entregar a preciosidade embrulhada num saco plástico. O peregrino agradece, e segue viagem.
E aí chegam os três túneis. Que beleza, que experiência atravessar o primeiro deles, com 160 metros de comprimento em total escuridão – os demais têm 74 e 40 metros. Sem lanterna, é quase impossível percorrê-lo, pois o solo é irregular, bem areado, e com muita água que mina da pedra. Ali, a sensação é de passagem de uma dimensão a outra. O passado não bate à porta, mas a arromba depois de invadi-la. Sensação única. No túnel do meio, apreciar as paredes de pedra, como que esculpida a picareta, é um prazer pleno. E a viagem termina, em Murineli, com o caminhante sendo recebido pela velha estação ainda com ares de mocinha. O trecho à frente, que chegava à famosa Ponte Seca, não existe mais, ao menos fora das cercas de arame farpado e porteiras de fazendas que cruzaram o caminho do trem.
O apito do trem silenciou-se quando eu tinha 5 anos. Morava na Rua Henrique Zamith, 19, onde nasci, a 100 metros do pátio ferroviário hoje ocupado pela Polícia Militar. A ferrovia era meu quintal, extensão de minha casa. Caminhar de Cachoeiras de Macacu a Sumidouro, passando por Nova Friburgo, é revisitar a mim mesmo, carimbar o passaporte de uma viagem ao meu interior. De Milton Nascimento e Fernando Brant pego emprestado, e se pudesse roubaria, a canção “Encontros e despedidas”, que me acompanhou a cada passo dessa aventura por trilhos e trilhas: “A plataforma dessa estação... é a vida!”
*Giovanni Faria é jornalista, professor da PUC, friburguense ardoroso e apaixonado por trens e caminhadas
Deixe o seu comentário