O médico cardiologista Marcelo Orphão Motta integra as equipes do Hospital Municipal Raul Sertã, São Lucas e Unimed, é membro do comitê gestor de crise da Covid-19 e coordena o Setor de Pronto Atendimento. Contaminado pelo Covid-19, ano passado, e curado, ele conta aqui como foi voltar ao trabalho.
“Fazem cinco meses que tive covid-19, quando passei seis dias internado e mais 20 dias em isolamento, o que para mim, foi o pior. Até hoje sinto que meu olfato não voltou totalmente: alterou alguns aromas, o paladar mudou, e apesar disso, são sequelas levíssimas, o que agradeço imensamente. Vários amigos, colegas e pacientes não tiveram essa benção. Não sobreviveram, viraram estatísticas, tudo passa a ser relativo.
Quando voltei ao trabalho, passei a compreender mais, a entender como dói um isolamento, a perda de convivência, como ter saúde é essencial. Voltei a todas as minhas muitas atividades profissionais, com um olhar mais humano, mais compreensivo. Passei a valorizar mais ainda a minha família, meus amigos, pois são essas relações as mais verdadeiras. Somos humanos, e somos finitos neste planeta. Penso nos amigos que não estão mais aqui, que não puderam permanecer nesse plano…
Valorizo o sol, a respiração, a natureza, valorizo poder respirar. Pode parecer clichê, mas algumas coisas são verdades universais. Ainda viveremos um bom tempo com máscaras, cuidando mais da higiene — é bom ver que muitas pessoas estão evitando várias outras doenças com regras básicas como lavar mais as mãos — e mantendo o distanciamento social.
Sobreviveremos a isso, mas temos ainda um imenso trabalho pela frente, que é vacinar um país de dimensões continentais como o Brasil, e seus quase 210 milhões de habitantes. Sorte nossa contar com o Sistema Único de Saúde, o SUS, que, embora tão sucateado, possui um exército de profissionais, quase invisíveis, mas com um dos melhores gerenciamentos de vacinação do mundo.
Contamos com profissionais como os da Vigilância em Saúde, da Imunização, da Vigilância Sanitária, com a grande responsabilidade de distribuir não só as vacinas do coronavírus, mas todas as demais vacinas que combatem várias outras doenças.
Portanto, há muito a ser feito. Por isso é necessária a contribuição de todos, a compreensão de que “todos” somos um. O coronavírus nos ensinou que não respeita fronteiras, não respeita políticas e políticos, não respeita negacionistas. Ele simplesmente infecta e pode matar. Somos todos responsáveis por deter isso. TODOS. Outras pandemias virão.
Nesta semana, a Rússia detectou o H5N8 em algumas mutações do coronavírus. Cabe a todos nós manter atitudes saudáveis, lutar para que todos tenhamos condições de boa alimentação, acesso à saúde. Não da forma política que vemos hoje, mas da forma verdadeiramente solidária, verdadeiramente humana.”
A assustadora passagem da condição de médico a paciente infectado por um vírus desconhecido
“Só quem passa por todo esse processo pode descrever o que é essa doença!”
O psiquiatra Danilo Cassane, especialista em Saúde Mental, foi internado no dia 28 de janeiro, não precisou ser intubado, e teve alta em uma semana, no dia 6 de fevereiro. Ele conta como foi vivenciar essa dolorosa experiência:
“Foram dias difíceis, nunca me imaginei na condição de paciente. A gente trabalha tanto, cuida tanto das pessoas que, por vezes, acabamos esquecendo de cuidar de nós mesmos. Não pensamos que somos pessoas normais como nossos pacientes, que a qualquer momento podemos adoecer também… E foi justamente o que aconteceu comigo.
Me sentia seguro pelo fato de ser médico, aquele que cuida dos outros e que provavelmente “não teria nem tempo” para ficar doente e virar paciente. Mas virei, e de uma hora para outra. Fui de médico a paciente em uma semana. E paciente grave!
Sempre lidei muito bem com os pacientes graves e os encorajo a seguirem firmes, a serem fortes, repetindo que tudo vai terminar bem. E muitas vezes até achei que alguns pacientes estavam mais instáveis emocionalmente do que deveriam naquela situação.
Mas, não temos a noção absoluta de como um paciente grave se sente. Só sabemos quando nós somos esse paciente. Na verdade, mesmo sendo profissional e conhecendo muito bem as moléstias, nós temos uma boa noção de como o paciente se sente, mas nunca a certeza do que realmente ele está sentindo. Só quem passa por todo esse processo pode descrever, se é possível expressar em palavras, o que é essa doença!
Naqueles dias em que estive internado, tinha a sensação de que eu não sabia absolutamente nada de medicina, de psiquiatria… E sabe o que mais escutei? Que precisava manter a calma, que eu estava muito ansioso e que isso pioraria meu padrão respiratório.
Ora bolas, pensava, como alguém naquela situação conseguiria manter a calma? Mas era justamente o que eu sempre falava para meus pacientes nessa mesma situação! Com uma pequena diferença: nós, enquanto médicos, temos uma noção mais apurada da clínica, dos exames, da evolução... e aí isso me desestabilizava ainda mais.
E quanto mais eu ficava estressado no leito, mais a minha mente era dominada pelo medo de morrer. Daí pensava o quanto eu amava a minha família e no quanto eles iriam sofrer se o pior acontecesse.
Foram uns três dias — dos seis que passei no CTI — com esses pensamentos ruminantes até eu apresentar uma melhora clínica, conseguir avaliar melhor as coisas e ver, através dos exames e do que os colegas médicos me falavam, que eu tinha apresentado uma melhora significativa. E, claro, eu também me senti bem melhor em comparação àqueles primeiros dias desacreditados por mim.
Foi quando comecei a pensar e analisar minha trajetória. Toda a minha vida passava pela minha cabeça, o que eu já havia feito e faria, o que eu precisava melhorar, como eu deveria encarar a vida a partir daquele momento, afinal estava tendo uma segunda chance. E pensava na sorte que tive…
Sorte de estar numa instituição estruturada, sorte de ter excelentes profissionais cuidando de mim, sorte de ter uma família maravilhosa, sorte de ter amigos, e até pacientes que estavam torcendo e me mandando energias positivas a todo momento. Tenho sorte de estar vivo hoje!
Num cenário onde milhares de pessoas morreram e continuam morrendo, me perguntava sobre o por quê de eu ter escapado dessa estatística.
É uma doença que não tem rabo nem cabeça, que ainda não se sabe o suficiente sobre ela, e a incerteza do que pode acontecer é algo assustador! Passado todo aquele susto tive alta e fui para casa após 10 dias de internação. Foi estranho e maravilhoso voltar para casa.
Estranho, porque há poucos dias achava que poderia não voltar mais. No caminho de volta, enquanto minha esposa dirigia o carro, eu prestava atenção em detalhes que nunca havia reparado, apesar de ter passado centenas de vezes pelo mesmo caminho. A sensação era maravilhosa porque eu estava curado, de volta para o meu lar, com a minha família, que é tudo de mais precioso na minha vida!
E o que eu aprendi disso tudo? Aprendi que a vida dá voltas e nos prega peças que nunca esperamos. Aprendi também a dar mais valor para a nossa existência e para as pessoas que nos amam. Aprendi que somos pequenos e impotentes demais diante de algumas adversidades. Aprendi que ainda tenho muito a aprender e muito a ensinar! Enfim... aprendi a aprender de verdade!”
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