Se você, leitor, teve dificuldades de ler a frase acima, saiba que esse costuma ser o dia a dia de muitas pessoas no mundo diagnosticadas com dislexia. Muitas vezes, ainda na infância, elas são confundidas com alunos preguiçosos ou desorganizados. Recebem reprimendas de pais e professores por estarem sempre dispersos e por demorarem a copiar do quadro para o caderno. Podem trocar letras, pular linhas, escrever letras ao contrário ou repetir sílabas. Podem confundir esquerda com direita e algumas têm dificuldade de fixar conteúdos.
Para que todos experimentassem a dificuldade rotineira de alguém com essa condição, a autora paranaense Marina Miyazaki (foto acima), de 53 anos, resolveu escrever um livro no que ela chama de "dislexiquês" — com os erros que a maioria das pessoas com dislexia cometem quando precisam colocar no papel o que querem dizer. Como ela mesma explica na obra, "pela primera ves num livro, os não-disléxicos se adaptarão aos disléxicos, não ao contraririo, como sempre aconteceu".
No livro Dislexicando (Editora Jandaíra, 2015), uma menina resolve contar a todos sobre a sua dislexia, mas não de forma convencional. A obra reproduz pequenos erros ortográficos (como os de algumas frases desta matéria), traz repetições de palavras ou sílabas e tenta conduzir o leitor a desvendar os labirintos da sua mente e a sua maneira de pensar. Com um tom crítico aos adultos (pais, professores e especialistas), a quem a narradora chama de "Eles", Marina mostra como a falta de compreensão sobre a dislexia faz as crianças ficarem ainda mais perdidas, desmotivadas e, muitas vezes, com autoestima comprometida. De maneira leve, a obra permite que os leitores compreendam que o diagnóstico não é uma sentença condenatória e que o transtorno não impede ninguém de aprender, estudar, trabalhar, dirigir ou alcançar sonhos.
"É um livro infantojuvenil para leigos sobre as minhas questões com dislexia, quase uma autobiografia", afirma a autora. "Eu quis fazer um livro de nós para nós mesmos. Porque os especialistas fazem os livros deles para eles. É o livro de dislexia técnico deles pra eles mesmos. Eles não falam para nós", defendeu ela, que descobriu o transtorno já adulta.
"Eu descobri depois que tive filhos. Porque para mim, as falhas que eu cometia eram coisas que aconteciam com todo mundo. Eu sabia que me atrapalhava, mas não sabia que era nesse grau. Quando você tem filho, passa a ver que eles não fazem aquelas coisas que você faz. Mas só que eles começaram, sem querer, a me diagnosticar. 'É hoje mesmo? Olha! Vê direito porque se for a mamãe vai ver errado'."
Afeto como motor de transformação
Mãe de cinco, Marina relata que o convívio com as crianças deixou ainda mais evidentes algumas das dificuldades que ela sempre teve e destaca que o transtorno não se limita a falhas na ortografia.
"É a memória que é um pouco bagunçada. Quando você lê uma coisa, você anota na agenda, mas aí você não olha [na agenda] ou, quando você olha, olha no dia errado. Ou então, você anota no horário que era para ser a data. Era para ser dia 17 e você anota 17 horas", exemplifica Marina, que conta, entre risadas, já ter deixado os filhos em uma casa de festas, no aniversário errado.
"Quando eu fui buscar e perguntei como tinha sido a festa, o mais novo falou que o único problema era que o João Paulo [o aniversariante] não tinha ido. Achei que era brincadeira de criança, até que a dona do buffet veio me perguntar, quando eu já estava no carro, se eu não estava no aniversário errado e até tentou me devolver o presente", relembra, deixando claro que conseguiu transformar a situação constrangedora em humor.
Apesar dos diversos contratempos — no primeiro contato feito pela reportagem por redes sociais, Marina trocou um dos números e forneceu o celular errado para a repórter — e "causos" que depois de um tempo viram piada, ela defende que a dislexia não é um "bicho de sete cabeças" e aposta no afeto como motor de transformação no ensino de crianças atípicas.
Para a autora, as escolas não estão preparadas para lidar com o diferente e há muito destaque nos erros e nas falhas das crianças. "As avaliações, por exemplo, são feitas por pessoas típicas e querem que a gente se encaixe. O problema é de ensinagem, não é de aprendizagem", destaca.
"Me sinto em vantagem"
O artista plástico, type designer e fotógrafo Tony de Marco, que ilustra as páginas do livro, concorda. "Hoje, para mim, é muito claro que a dislexia é a responsável pelo jeito que eu sou e pelas coisas que eu consegui fazer ao longo da vida. Não vejo mais como uma dificuldade ou algo que me atrapalhe, pelo contrário, me sinto em vantagem por ser disléxico", afirma.
Tony descobriu a dislexia em 1975, aos 12 anos. O diagnóstico precoce, entretanto, não o ajudou muito já que, à época, ainda não se tinha uma compreensão clara do que se tratava. "Somente muitos anos depois, quando comecei a ler livros traduzidos do inglês sobre o tema, é que eu me identifiquei e passei a entender melhor a minha condição."
A parceria de Marina e Tony começou a ser traçada virtualmente por meio do Twitter, onde Marina mantém o perfil Dislexicando — local onde ela começou a se expor como uma pessoa com dislexia, escrevendo, propositalmente, com desvios da norma culta. Apesar de essa condição não ter "cura" (até porque não é uma doença), a autora enfatiza que é possível aprender a viver com ela.
"O meu recado é esse: a dislexia não é esse terror que eles colocam. A maioria das pessoas com dislexia tem uma parte cognitiva muito acima da média, tem uma criatividade enorme. Então, basta deixarem a gente descobrir qual a melhor forma de aprender — as pessoas aprendem de forma diferente uma das outras, tanto os típicos como os atípicos. E, no mais, os adultos que lutem porque a dificuldade, como eu disse, é de ensinagem", reforça.
(*Colaboração para Ecoa, de Brasília)
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