Em maior ou menor grau, dependendo do tamanho das cidades que habitamos, vivemos cercados de desconhecidos. Todos os dias, cruzamos com estranhos que não conhecemos e que, provavelmente, não conheceremos em qualquer lugar ou momento. Nessa atmosfera, não é de surpreender que a apatia pelo sofrimento alheio e a distribuição de grosserias tenham se tornado tão comuns e aceitáveis. Podemos até nos surpreender se um completo estranho emergir da multidão nos oferecendo uma ação de gentileza, sem nada pedir em troca.
O trabalho de caridade e o serviço comunitário são ferramentas inestimáveis para melhorar o nosso mundo, mas a gentileza é mais do que boas ações ou voluntariado apenas. Gentileza é empatia, compaixão e conexão humana; é um sorriso, um toque, uma palavra de conforto. Mesmo o menor gesto pode clarear um dia escuro ou aliviar um fardo pesado.
“Gentileza gera gentileza!”, repetiu, incansavelmente, durante décadas, o Profeta Gentileza — nascido em São Paulo e batizado José Datrino (1917-1996). Considerado uma personalidade urbana carioca, o pregador ficou famoso pelas frases que escrevia nas colunas do Viaduto do Gasômetro, nos arredores da Rodoviária Novo Rio, no centro da cidade.
Seus escritos e falas versavam sobre a generosidade e o amor ao próximo, boa parte deles pintados em 56 murais dispostos ao longo de 1,5 quilômetro. Aos que o chamavam de maluco, ele respondia: “Sou maluco pra te amar e louco pra te salvar”. Essa figura singular perambulava pelas ruas e praças, usando uma túnica branca e uma longa barba, pregando o amor, o perdão e a adoração à natureza.
Sobre a virtude de ser gentil, o líder espiritual dos budistas tibetanos, Dalai Lama, disse: “A minha religião é muito simples: é a gentileza”. Nunca é demais destacar a declaração do monge, que calou fundo no coração dos milhões de seguidores do budismo. Em seus ensinamentos, Dalai Lama costuma se referir à falta de afeto e o cuidado com o outro, que tem observado nos últimos tempos. Para ele, nada justifica a atual escassez de comportamentos gentis.
De maneira geral, líderes religiosos argumentam que a religião é um modo humano de nos religarmos com Deus. E exercitar a gentileza nos religa com o divino que há em nós e que também existe no outro, gerando uma corrente de energia boa e promovendo leveza pelo bem que faz ao outro e àquele que a pratica. A gentileza vai além de uma questão de educação: é cordialidade, de cordial, que se refere ao coração, ao afeto. No entanto, nesses tempos de preocupação apenas consigo mesmo, de pouco tempo para o outro, de tempos dos “sem-tempo”, a gentileza é uma virtude que anda relegada a segundo plano.
Para a doutrina espírita, por exemplo, a gentileza é um princípio da renúncia e se ainda não aprendemos a renunciar integralmente, devemos, pelo menos, ser gentis com o semelhante, estendendo a mão a quem precisa e dirigindo palavras de esperança. Quantas discussões, brigas, desentendimentos, que custam tão caro aos envolvidos, poderiam e podem ser evitados pelo exercício da gentileza, ao simplesmente ouvir, respeitar, acolher a fala, o argumento, a verdade do outro.
Infelizmente, o orgulho — fruto da necessidade egóica de se mostrar e se autoafirmar como superior, dono da verdade, da razão — bloqueia a humildade, a lucidez e a sabedoria que conduzem à possibilidade de entendimento e pacificação.
Se nos comprometermos a praticar com frequência a gentileza a ponto de se tornar um hábito, os benefícios advindos desse costume gerarão tantos benefícios em nós e em nossas vidas que nos tornaremos pessoas melhores. E, sendo melhores do que éramos, estaremos contribuindo para um mundo melhor.
A corrente invisível do bem que a prática da gentileza gera
A gentileza deveria ser um hábito, mas, na agitação do cotidiano, ela acaba sendo engolida pela pressa e pelo individualismo. No entanto, é muito saudável colocar em prática o exercício de ser gentil, pois a ação beneficia quem recebe o gesto e quem o oferece. Dizer bom dia, ceder o lugar no transporte coletivo, pedir licença, agradecer, oferecer um sorriso... Essas são algumas ações que podem fazer toda a diferença nas relações interpessoais.
“Quando recebemos uma gentileza numa cena do cotidiano, mesmo vindo de um estranho, desperta em nós uma sensação de reconhecimento e respeito. Gera, por consequência, um comportamento respeitoso com o outro. Cria-se uma corrente invisível”, diz Rose Paim, doutora em Psicanálise e Educação e docente na UFRGS.
De acordo com um estudo publicado pelo Springer Science, a gentileza consegue, por exemplo, ajudar a afastar a ansiedade porque ações gentis e interações sociais positivas elevam a autoestima e melhoram o bem-estar emocional. Aliás, muitos estudos apontam para os benefícios em ser gentil para a saúde física e mental. Confira alguns deles:
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Alivia a ansiedade: Em 2015, um estudo realizado na Universidade da Colúmbia Britânica (Canadá), pacientes que estavam em tratamento para a ansiedade foram convidados a praticar um ato de gentileza por dia. Após quatro semanas, todos os pacientes estavam mais relaxados, com os níveis de dopamina e serotonina (hormônios da felicidade) mais elevados. "A gentileza provoca uma certa excitação muito benéfica e a pessoa acaba ficando mais relaxada", diz a psicóloga Eliana Melcher Martins, mestre e doutoranda pela Unifesp.
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Aumenta a sensação de felicidade: Ser gentil ajuda a estabelecer laços, pois cria uma ordem mais afetiva com os outros. "Uma sequência de reações amistosas gera um ambiente acolhedor provocando uma sensação de bem-estar", diz Claudio Paixão, doutor em Psicologia Social e professor da Escola de Ciência da Informação da UFMG. Por isso, a gentileza tende a deixar as pessoas mais felizes. E uma pesquisa desenvolvida pela Harvard Business School que avaliou a felicidade em 136 países, apontou que as pessoas altruístas são as mais felizes em geral. Esse estudo mostrou que a satisfação sentida após um ato gentil tem efeito consistente na felicidade.
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Contribui no tratamento de outros quadros: O estudo conduzido na Universidade da Colúmbia Britânica (Canadá), que pediu aos alunos para praticar um ato de gentileza por dia, apontou também que houve redução de isolamento social, até mesmo naqueles que apresentavam fobia social. "Na medida em que estamos envolvidos e comprometidos com o bem do outro, saímos da esfera do individualismo e egoísmo promovendo nosso próprio bem. Isso é entendido também como sinônimo de saúde mental", confirma Paim. Portanto, exercitar a gentileza pode ser uma ótima maneira de minimizar os efeitos da depressão, ajudando a enfrentar os sintomas da doença.
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Garante mais energia: "Quando as pessoas praticam a gentileza toda gama de energia e positividade pode se tornar constante e dar motivação para uma qualidade de vida melhor", diz Martins. Por isso, um estudo publicado no International Journal of Behavioral Medicine sobre a gentileza apontou que, após ajudar os outros, uma pessoa tende a se sentir mais forte e com mais energia. Para Paixão, o ato gentil também cria um efeito potencializador criando um entorno mais positivo.
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Melhora a sensação de dor: A prática de ações gentis e solidárias promovem a produção de endorfina, um analgésico natural do organismo. Por isso, quem é gentil regularmente pode sofrer menos dores. E um estudo clínico realizado pela Universidade de Sheffield (UK), notou que pacientes que apresentavam dores musculares conseguiram uma boa melhora após receberem a indicação de serem mais gentis com os profissionais de saúde que o atendiam. "Considerando que gentileza é uma forma de atenção e cuidado no trato com o outro, o desenvolvimento e prática dessa qualidade relacional desencadeia sentimentos muito positivos", confirma Paim.
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Beneficia a saúde do coração: Segundo um estudo realizado pela Universidade de Miami (EUA), as pessoas gentis têm uma produção aumentada de oxitocina, um hormônio dos vínculos emocionais. Isso pode ajudar a baixar a pressão arterial beneficiando a saúde cardiovascular. A oxitocina também pode ser produzida quando nos apaixonamos, portanto, tende a diminuir os níveis de cortisol responsável pelo estresse, um dos grandes vilões para a saúde do coração.
(Fonte: VivaBem/Uol)
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