Burnout: um sofrimento que vem aumentando no mundo inteiro

“Recuperando o termo burnout de uma outra forma, vamos queimar até o fim as nossas riquezas? Um grande burnout brasileiro?!”
sexta-feira, 20 de janeiro de 2023
por Ana Borges (ana.borges@avozdaserra.com.br)
Psiquiatra e psicanalista Carlos Pires Leal (Foto: Acervo pessoal)
Psiquiatra e psicanalista Carlos Pires Leal (Foto: Acervo pessoal)

O psiquiatra e psicanalista Carlos Pires Leal é um dos fundadores da Associação Psicanalítica de Nova Friburgo, que se mantém ativa há quase 25 anos. Membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro, participa da formação de novos psicanalistas e durante cinco anos escreveu a coluna “A Psicanálise no Cotidiano da Vida” no jornal A Voz da Serra. Faz atendimentos presenciais e online em Nova Friburgo nas áreas da psiquiatria e da psicanálise. 

Nesta entrevista, o dr. Carlos Leal aborda a Síndrome de Burnout, que, segundo ele, provavelmentente seja mais citada hoje em decorrência da frequência com que ela ocorre, atingindo milhões de pessoas no mundo todo nas últimas décadas. A tradução da expressão inglesa significa ‘queimar até o fim’

Sobre a doença, ele informa “tratar-se de um esgotamento que ocorre de forma insidiosa e progressiva o que muitas vezes dificulta sua identificação. Os sintomas podem ser inespecíficos e confundidos com uma série de doenças clínicas ou psiquiátricas — o que leva as pessoas aos hospitais inicialmente e não a psicólogos ou psiquiatras”. 

Alguns dos sintomas são: esgotamento e a fadiga crônicas; dores e tensões musculares; enxaqueca e dores de cabeça constantes; mudanças repentinas no humor; irritabilidade; lapsos de memória; agressividade; dificuldade de concentração e conclusão de tarefas; alterações do apetite; perda de prazer por atividades que antes eram prazerosas; isolamento e irritabilidade para lidar com pessoas; quadros depressivos — leves em estado inicial mas que podem se agravar.  

Em seu consultório tem recebido diariamente pacientes com esse tipo de sofrimento. “Muitas vezes, a falta de informação faz as pessoas procurarem hospitais e pronto-socorros para pedir ajuda, procurando exclusivamente no corpo o que está em outro lugar. Não imaginam que encontrar alguém que os escute pode pacificar as incômodas tormentas internas que indicam que sua sensibilidade sobreviveu e clama para encontrar novos sentidos para a aventura da vida e novas estratégias para fazer frente aos desafios do cotidiano”.

Ele destaca que o burnout ocorre com uma frequência maior (e é mais comumente observado e nomeado) nos ambientes de trabalho. Não apenas pela intensidade do ritmo do trabalho, mas pelas condições nas quais é realizado, entre elas a pouca valorização do trabalhador, baixa remuneração, risco de demissão e perspectiva de desemprego. 

“É importante considerar que as relações no ambiente podem gerar esse tipo de sofrimento como, por exemplo, as relações abusivas (assédio sexual ou moral), etc... Mas a síndrome pode ocorrer em qualquer situação na qual o estresse (social, familiar) seja constante e intenso, e a capacidade da pessoa de enfrentá-lo seja limitada. Nas últimas décadas o estresse decorrente da percepção da crise ambiental e a crise climática têm sido um fator que pode gerar quadros de estresse contínuo. Lamentavelmente esse tipo de sofrimento tende a aumentar no mundo inteiro. Há livros muito interessantes dedicados ao estudo do impacto emocional decorrente da crise climática. Questões relacionadas à cultura contemporânea certamente podem gerar quadros de estresse crônico (ou agudo)”, analisa. 

Leal ressalta que vivemos tempos de grandes incertezas, de dissolução dos ideais civilizatórios, que nos fornecem referências das boas lutas pelas quais lutar e alimentam esperanças de transformações positivas para as pessoas e coletividades. “A intolerância com o diferente de nós, a fantasia de que a eliminação, por vezes real, daqueles dos quais divergimos e as polarizações ideológicas são fonte de grande sofrimento. Busca-se salvação para este desassossego em falsos líderes e profetas e suas falácias salvacionistas. O Brasil vive de forma aguda essa realidade. As cenas de delinquência coletiva e destrutiva envolvendo a depredação das sedes dos poderes constituídos em Brasília são exemplos dramáticos desta realidade”.

Desafios para refundar novos ideais

Sobre os últimos 100 anos no Brasil e no mundo, na cultura e na civilização, Leal focalizou mais de perto o período denominado pós-modernidade, concluindo que a vida no Planeta “ficou mais complexa, incerta, mutante, exigindo um esforço adaptativo descomunal com um expressivo aumento da angústia em todos os segmentos sociais. Certezas e referências que nos davam alguma ilusão de balizamento social ruíram. Temos sido desafiados a nos reinventar e a refundar novos ideais. Esta experiência é extremamente desafiadora, ainda que potencialmente rica, mas geradora de intensa turbulência emocional.

No Brasil este período coincide aproximadamente com a redemocratização e a promulgação de uma nova Constituição que refundou a Democracia no nosso país, após um longo período de ditadura miliar. Os ataques delinquentes e anticivilizatórios à Democracia do último dia 08 demonstram a ebulição política e convocam a sociedade brasileira a construir novos pactos sociais baseados na razão, na ciência, na verdade, na ética social. A esperança de resgate e salvação por um líder autoritário, onipotente, mitológico, que ilusoriamente a todos protegerá, traduz um comportamento que na psicanálise chamamos de regredido, infantilizado, que mantém o país no atraso e prolonga o sofrimento social. 

Um país que convive com 10 milhões de irmãos com fome aguda não é viável. Um país no qual as desigualdades sociais têm dimensões assombrosas só pode nos levar ao desastre. Esta realidade faz a violência explodir e a perspectiva de progresso sustentável evaporar. Um país que queima impunemente suas florestas da qual a sobrevivência planetária depende é um país suicida. Recuperando o termo burnout de uma outra forma, vamos queimar até o fim as nossas riquezas? Um grande burnout brasileiro?!

Não é de se estranhar que, neste contexto, o Brasil seja um dos países campeões no uso de antidepressivos e outras drogas lícitas e ilícitas. De acordo com a OMS, as taxas mundiais de suicídio estão diminuindo, mas nas Américas aumentaram 17%. Entre os jovens de 15 a 29 anos, o suicídio aparece como a quarta causa de morte mais recorrente, atrás de acidentes no trânsito, tuberculose e violência interpessoal”. 

  A expressão de uma potência

“Após os atentados terroristas ocorridos no último dia 8 de janeiro em Brasília podemos dizer que a Democracia brasileira vive um momento de vulnerabilidade assustadora. A negação do potencial destrutivo de uma minoria antidemocrática de delinquentes foi minimizada. A conivência de segmentos de instâncias do Poder constituído ainda está para ser aquilatada. Por outro lado “não queimamos até o final” a Democracia brasileira. Ela sobreviveu, mesmo que com feridas profundas e provavelmente duradouras. 

A  contrapartida à barbárie pode ser representada pela posse da indígena Sonia Guajajara e de mulheres dignas e inspiradoras como Anielle Franco e Marina Silva. Seu significado histórico para a preservação da dignidade e da vida em nosso país é o que nos dará resiliência para superar este momento adverso e dele emergirmos como uma nação melhor. Para todos. 

Qualquer condição de adoecimento quando não cuidada e compreendida pode danificar, empobrecer e esfarelar a dignidade de qualquer ser humano. O adoecimento social faz o mesmo com um grupo social, com um país e com o Planeta. A Síndrome de Burnout (o estresse crônico) não desperta os instintos humanos. Mais correto seria dizer que são expressões possíveis destes instintos. 

Não esqueçamos, no entanto, que o homem porta em si tendências destrutivas lado a lado com potenciais amorosos, solidários, reparadores. A ciência tem feito progressos rapidamente, mas as transformações éticas necessárias para a disseminação igualitária dos seus frutos são mais lentas e incertas. A sociedade civil vem se organizando de forma crescente, produzindo uma reflexão crítica sobre a realidade. A interrupção, pela via democrática, de um caminho autoritário, reacionário e socialmente insensível é a expressão da sua potência”, encerra o psicanalista Carlos Leal.

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