Cem colunas e meus "decertos"

quinta-feira, 13 de julho de 2017

Hoje é domingo, quase onze horas da manhã. Na frente do computador,

começando a escrever a centésima coluna, meu pensamento vai para o ponto

de ônibus perto da minha casa, onde um banco feito de apenas uma tábua,

sustentado por duas toras de pinho, é protegido por um telhado coberto de

sapê. Imagino meus pés fazendo marcas no chão de barro batido, um pouco

úmido ainda pelo orvalho da noite fria. Estou só, cercada por um vento

despreocupado, aquecida por uma ponta de sol e abraçada pela paisagem...,

Ah, de um verde em várias tonalidades que faz meu olhar repousar.

Este devaneio me cutuca insistentemente, querendo me dizer que é

dentro desta paisagem que escrevo a maioria das colunas. Mas por que é

exatamente um ponto de ônibus que me inspira? Talvez porque seja um lugar

de passagem e de encontro. Minhas colunas também são locais em que meu

pensamento faz trilhas, moendo ideias e abrindo caminhos, que explode tal

qual o grão de milho quando aquecido na panela.

A primeira coluna que escrevi para este jornal intitulei de MINHAS AVÓS

E MEUS ABACATES quando descrevi as causas pelas quais me fiz escritora.

Ao longo destas cem, fui me conhecendo a cada frase, a cada título. De certo,

sou imaginativa. De certo, sou uma mistura de filósofa, educadora e escritora.

De certo, sou mulher. Por estes “decertos”, fui construído a identidade de

colunista, bem chegada aos ensaios, o que revela toda esta mistura de ser

alguém.

Cada coluna foi para mim uma experiência que reuniu meus “decertos”,

essencialmente femininos. E, resolvi passar por elas, tal qual um passageiro de

ônibus que passa por tantos pontos. Todas foram feitas com ecletismo. Parece

que juntei todo o meu saber e misturei ideias, reunindo formas de perceber a

existência. Nesta forma de percorrer caminhos, encontrei tantos escritores! O

primeiro foi Mário de Andrade que se aventurou em Macunaíma e abriu os

caminhos da literatura brasileira. E, depois, o sutil Lewis Carol que através de

Alice e suas frases continua a tocar o mundo e ser atualíssimo. Por falar

superlativos, Machado de Assis, com seu inusitado personagem José Dias,

também passearam comigo. Mas não deixaria de rever os grandes escritores

do século XVI, o criativo Miguel de Cervantes e o sábio Shakespeare. Passei

pelos eternos contos de As Mil e Uma Noites e, mais uma vez, admirei os

poetas compositores de música, como os Beatles e Lenine. Parei para mais

uma vez admirar os grandes mestres, como Humberto Eco. Me curvei diante

de Fernando Pessoa e Ferreira Gullar. E, assim fui, de coluna em coluna,

rememorando amigos que fiz nos bosques feitos de palavras. Ah, como a

literatura une as pessoas!

Enfim, nestas cem colunas fui imensamente feliz. E, agora, mais ainda,

porque sou centenária. Sou decertos. Uma pessoa pouco melhor, talvez. Não

porque pesquisei, li e conversei. Ou tenha modificado minha forma de pensar.

Mas porque, como disse Reiner Maria Rilke, entrei em contato comigo mesmo,

escrevi com alma. Fui sincera.

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Tereza Malcher

Tereza Cristina Malcher Campitelli

Momentos Literários

Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis, presidente da Academia Friburguense de Letras e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.

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