Sua vida tem significado nobre?

quinta-feira, 06 de outubro de 2016

No último dia 29 de setembro completaram-se 20 anos da morte de meu pai, Manoel Alves de Souza, que foi proprietário da Papelaria Simões, o “seu Manoel”, ou o “seu Simões”. Papai era do interior de Pernambuco, e foi para o Rio de Janeiro ainda jovem para “tentar a vida”. Trabalhou numa padaria de um senhor português no Centro do Rio, dormia no sótão da loja se cobrindo com saco de farinha de trigo, e foi crescendo na confiança do patrão, se tornando um funcionário exemplar.

Vitimado por tuberculose, veio para Nova Friburgo se tratar. Na época, além da cirurgia, o ar puro da montanha era terapêutico. Ar puro ainda é curativo. Passou por cirurgia dos pulmões, conheceu minha mãe na pensão onde se hospedava, se casaram e permaneceram na cidade. Ajudado pelo patrão, papai conseguiu adquirir a antiga Simões, que ficava no número 46 da Avenida Alberto Braune, e mais tarde adquiriu a loja no número 55 da mesma avenida. Mamãe o ajudava no balcão, e logo tiveram filhos que engatinhavam pela loja.

Papai era dedicado à profissão, e exercia misericórdia para com os pobres e necessitados. Mamãe o ajudou nisto ao longo da vida, aliviando o sofrimento das pessoas. Eles compartilhavam o que ganhavam, em vez de acumular só para si mesmos. Você compartilha o que a vida lhe tem dado, ou guarda tudo egoisticamente?

Até hoje pessoas desconhecidas para mim, me encontram em qualquer lugar, e contam o que papai fez para elas. Uma delas não podia pagar o material escolar para os filhos, e papai deu tudo de graça. Outra precisava outra mercadoria, e papai cedia sem ter certeza de que seria paga. Ouvi muitas histórias assim sobre ele. Ele dizia que os mais fiéis pagadores do crediário da loja eram os mais pobres.

Por anos a Simões pagava todo o pão consumido pela Casa dos Pobres São Vicente de Paulo, e vim a saber disto tempos depois. Meus pais não faziam propaganda das suas caridades para sair em colunas sociais. Mamãe recebia “comadres” e “compadres”, pobres a quem ela ajudava às dezenas, com comida, roupa, consultas médicas etc.

Um ex-comprador de grande indústria da cidade, me abordou na rua para falar do “seu Manoel”. Disse que papai nunca havia pedido propina para que suas mercadorias fossem compradas por aquela indústria. Em licitações da prefeitura, indústrias, escolas etc, ele apresentava seu orçamento. Aceitariam ou não, mas sem propina. Ele dizia: “Dez folhas de papel almaço são dez folhas de papel almaço.” Não roubava o freguês. Incentivava seus empregados a se esforçarem para sair do balcão e abrirem seu próprio negócio. Tinha compaixão por eles, não os explorando, e não os tratava como máquinas para produzirem para ele.

Felizmente papai não caiu nesta prática comum de patrões que ficam ricos pela exploração impiedosa de funcionários, além de outras fraudes. Meu pai não era da patota da ditadura capitalista. Ele era decente. Viveu 83 anos produtivos. Lutava para que a Simões fosse “a casa mais simpática da cidade”. Ele estava além do seu tempo. O que hoje se faz sobre gestão de qualidade em empresas, ele fazia da sua cabeça, na Papelaria Simões. Ganhava dinheiro como comerciante honestamente, sem fraudes, sem “notas frias”, sem “mercadorias suspeitas”, sem explorar empregados, sem dar ou receber propinas.

Seu Manoel vivia uma vida simples, sem ostentação, sem puxar saco de políticos ou empresários poderosos. Era um pau de arara arretado no trabalho. Homem sereno. Deixou um grande exemplo de alguém que viveu uma vida compenetrada, digna, de trabalho e fé, para mim e para meus irmãos e irmãs, e para todos que o conheceram.

Se você quer um bom exemplo de honestidade, produtividade, serenidade, trabalho, é com você. Não se faz mais patrões como papai. Ele faz falta para muita gente. A cidade perdeu um grande homem. Mas é assim, os mais exaltados nem sempre são realmente os melhores. Os melhores homens e mulheres estão espalhados por aí, a maioria no anonimato, vivendo uma vida que tem significado.

Papai e mamãe viveram a deles com significado. Ajudaram a aliviar o sofrimento de muita gente e contribuíram para que a cidade e o país se tornassem melhor. Sua vida tem significado nobre assim?

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César Vasconcelos de Souza

Cesar Vasconcellos de Souza

Saúde Mental e Você

O psiquiatra César Vasconcellos assina a coluna Saúde Mental e Você, publicada às quintas, dedicada a apresentar esclarecimentos sobre determinadas questões da saúde psíquica e sua relação no convívio entre outro indivíduos.

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