A insanidade da mentira

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

Em medalhas dos Alcoólicos Anônimos nos Estados Unidos há inscrita a frase: “to thine one self be true”, cuja tradução literal é “para que o seu eu seja verdadeiro”. É uma frase significativa para a doença do alcoolismo e, por extensão, para outras situações na vida.

O alcoolismo, e outras dependências químicas, se não tratadas, produzem gradativa deterioração do caráter do dependente. Uma das atitudes que destroem o bom caráter é a mentira.

Mentir é fugir da verdade. Fugir da verdade é insanidade. Nada como a verdade para promover saúde mental, junto com o afeto equilibrado. O dependente químico mente cinicamente, como os corruptos, o que faz parte da doença, e ele faz isto para a manutenção da fuga da dor que a droga de escolha promove.

Fugir da verdade por um tempo evita o confronto com uma dor mental que pode ser bastante incômoda para uma pessoa. Nossa mente usa mecanismos de defesa psicológica para lidar com a dor emocional que a pessoa não tem consciência ainda. Dor emocional pode ser medo, insegurança, tristeza, angústia, vergonha, culpa, timidez excessiva, etc.

No alcoolismo e em outras situações de conflito na vida, é comum o alcoólico usar a negação, um dos mecanismos de defesa. Como o nome diz, na negação a pessoa nega a existência da dor, da tristeza, da ansiedade, do descontrole ou de outros sentimentos que significam desprazer para ela. Por exemplo: diante de uma demissão do emprego, a pessoa pode dizer “Não tem problema. Nunca gostei deste trabalho mesmo. Estou ótimo!”, enquanto que na verdade ela está apavorada com o desemprego. O alcoólico ou dependente de outra droga, antes de entrar em recuperação, diz: “bebo só fim de semana”, “sei me controlar”, “paro com a droga quando quero.” Enquanto que, na verdade, ele bebe durante a semana, não tem mais controle sobre seu vício, e não consegue parar quando quer. Ele foge da verdade.

Negação é uma forma de mentira, mas é diferente de uma mentira consciente, dolosa, calculada, premeditada. A negação em geral é inconsciente, enquanto que a mentira é consciente. Algumas pessoas usam a negação diante de uma ameaça difícil de suportar e isto não é mentir para si mesmo de forma, vamos dizer, criminosa. Exemplo: você tem suspeita de um câncer de pele, seu médico pede uma biópsia, e dias depois você vai ao laboratório pegar o resultado. A ansiedade e o medo o faz abrir o envelope com o laudo e o resultado é positivo. Você está com um câncer.

Sua mente gira, se agita, a angústia aperta o peito, vêm mil pensamentos à mente, e você começa a dizer para si mesmo: “Não é verdade! Este laudo não é meu! A secretária trocou o nome do paciente!” Isto é negação, um mecanismo que temporariamente serve para amortecer a alma de algo que assusta, que dói, que apavora. Não está errado fazer isto porque é uma defesa emergencial para uma dor importante que a pessoa vai precisar aprender a administrar mais adiante.

A pessoa saudável emocionalmente vai parar com a negação e enfrentar a realidade, a verdade. A pessoa doentia emocionalmente vai querer ficar escondendo o tempo todo de si mesma a verdade, o que somente adia o processo de cura. Mas não devemos forçar alguém a ver o que não quer ver, ou que não está pronto para enxergar. A vida vai dizer.

Para melhorar a saúde mental pessoal, a saúde da família, da comunidade, a saúde social e política de nosso país, a pergunta que devemos fazer para nós mesmos é: quero que meu eu seja verdadeiro? Quero parar com a negação e assumir a dor que ela tenta esconder? Quero um bom desenvolvimento de caráter? Ou quero continuar mentindo, corrompendo, enganando, roubando, me drogando com álcool, outras drogas, incluindo medicação, ideias, mentiras?

Você acha que estas são perguntas ingênuas numa sociedade altamente corrompida? Não. São perguntas vitais. Para a vida ou para a morte. Para o bem-estar ou para o mal estar. Ter a sensação de felicidade por ter roubado o povo e sem experimentar remorso é sinal de cauterização da consciência moral, um sinal de decadência psíquica, um perigo, uma morte da mente sadia. 

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César Vasconcelos de Souza

Cesar Vasconcellos de Souza

Saúde Mental e Você

O psiquiatra César Vasconcellos assina a coluna Saúde Mental e Você, publicada às quintas, dedicada a apresentar esclarecimentos sobre determinadas questões da saúde psíquica e sua relação no convívio entre outro indivíduos.

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