O ensaio do ensaio

quarta-feira, 02 de novembro de 2016
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A coluna anterior desencadeou esta quando falei sobre a linguagem acadêmica e a espontaneidade na expressão escrita. A gente faz literatura porque a vida não basta, é pequena demais para a grandiosidade da imago que guarda a completude, enquanto profundeza de imagens, afetos e desejos. Ah, Fernando Pessoa fazia ponderações sobre a vida como ninguém. Um dia depois de fazer aniversário, hoje aos 63 anos, sexagenária só na ponta do nariz porque minha alma tem 17, quero pesquisar sentidos sem academicismos, experimentando a expressão do meu livre pensar na construção deste ensaio, gênero literário que me possibilita deixar as ideias me tocarem e desencadearem reflexões filosóficas e éticas, misturando o poético com o didático. Sem a formalidade acadêmica, o ensaio me cai como uma luva por ser um modo de expressão subjetiva e sem estilo definido; ainda estou em busca da minha identidade. Ora, se sou indefinida, não tenho como escrever tratados. Logicamente, é preciso pesquisar para não sair escrevendo idiotices e argumentos insensatos. Mas posso retirar da poeira do fundo da gaveta, reflexões sobre as manchas que faz na velha camiseta de malha branca e encontrar nuances de cores que vão me exigir pesquisas para apresentar ideias inteligentes e sensíveis.

Aqui, ao ter a literatura como linha mestra, faço sobrevoos a respeito do existir; a literatura tem vida. John Dewey disse que ninguém se prepara para a vida; vivemos, apenas. Experimentamos máscaras e fantasias, decoramos textos, fazemos na frente de espelhos trejeitos e movimentos corporais para em algum momento experimentarmos uma cena, não mais do que um ensaio. Se por ventura a repetirmos, será, com certeza, diferente. Nossos momentos são tão únicos como nossas impressões digitais. Nada é repetido. Um texto pode ser copiado; se reescrito, será outro.

Os ensaístas se inspiram nas borboletas, estes seres sobreviventes, quase sobrenaturais, que interferem nos ecossistemas do planeta num simples bater de asas. Pena que as tenho visto tão pouco... Por quê? Talvez seja o tema da semana seguinte.

Em cada ensaio que escrevo para este jornal que me acolhe, quero experimentar a soltura que a escrita possa me possibilitar; quero ter a textura da garrafa pet que guarda um líquido banal, mas pode constituir, se sobrepostas, as paredes de uma casa, ou a estrutura de uma escultura exposta no MAM. Mas ainda estou no portão de ferro da PUC que guarda um belo e repousante jardim, cortado por um córrego que refresca os ares acadêmicos. Quero voar para o Cristo redentor, escalar o Pico do Caledônia e ser um vira-lata da Alberto Braune apenas para me resvalar na linguagem.

Mas quantos escritores não ensaiaram assim? Até Pablo Picasso ensaiou. E, assim, não fez Miguel de Cervantes, na primeira parte de Dom Quixote? E eu, não mais do que uma escritora mortal, apresar da imortalidade que a Casa de Salusse me oferece, vou ensaiar sempre, para um dia, quem sabe, escrever apenas uma frase que tenha um significado maior.

Uma palavra já inventei: Ajelasmicrim. Um bom começo, talvez.

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Tereza Malcher

Tereza Cristina Malcher Campitelli

Momentos Literários

Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis, presidente da Academia Friburguense de Letras e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.

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