Sangue de dragão, espírito de seis onças e resina de pau santo - 28 de julho 2011

domingo, 31 de julho de 2011

Nos primórdios da colonização, ainda pouco numerosas, lojas e boticas venderam remédios e “mezinhas”, aplicaram, alugaram ou venderam “bichas” (sanguessugas) e manipularam “récipes”. Nos séculos XVII e XVIII, as boticas no Brasil já se assemelhavam às congêneres europeias. Geralmente ocupavam dois compartimentos de uma casa. O boticário residia nos fundos, só ou com a família. Na sala da frente, ficavam as drogas expostas à venda. Enfileirados sobre prateleiras de madeira, viam-se boiões e potes etiquetados, contendo unguento e pomadas; frascos e jarros de vidro ou de estanho, igualmente etiquetados, com xaropes e soluções de variadas cores; caixinhas de madeira com pílulas e o mobiliário consistia em balcões, mesinha e bancos. Os boiões e frascos, de boa louça, ostentavam artísticas decorações. Nos fundos, uma sala de manipulação ou laboratório, vedada ao público, apresentava uma verdadeira babel de móveis e utensílios como potes e fracos cheios dos “simples” ou símplices medicinais, copos graduados, cálices, botijas, cântaros, funis, facas, bastões de louça, almofarizes ou grais, alambique, destiladores, cadinho, retortas, panelas, tenazes e balanças. As medidas de peso utilizadas pelo boticário eram o quartilho, o arrátel ou libra, a canada, a onça, a oitava, o escrópulo e o grão. Nesse laboratório se preparavam as fórmulas farmacêuticas. Ao lado dos remédios, as boticas ofereciam ao cliente as sanguessugas, apisteiros, semicúpios, comadres e até mesmo os frangos para o caldo das dietas.

Os medicamentos eram prescritos sob variadas formas, para uso interno e externo. Enquanto que alguns desapareceram, outras existem até hoje. A “poção”, composição líquida ou xaroposa, tomada às colheradas; o “pó”, no qual as substâncias são reduzidas a partículas finas; o “xarope”, cuja base é a água com açúcar; a “infusão”, na qual a água quente extrai o princípio ativo do simples; o “elixir”, tendo o álcool como veículo; o “decocto” ou a “decocção” ou o “cozimento”, quando o princípio ativo é obtido cozendo-se a substância líquida em ebulição; a “apózema”, cozimento de vegetais, adoçado; o “eletuário”, composto de pós, extratos, veiculados em xarope de açúcar ou de mel, contendo em certas preparações, o ópio; a “pílula”, sólida e de formato esférico; a “pomada”, apresentando como veículo a banha de porco ou de outro animal; o “ceroto”, com o óleo e a cera por base; o “bálsamo”, composto de vegetais narcóticos, com o azeite ou outro óleo por veículo; a “confeição”, uma mistura de várias substâncias; o “opodeldoque”, uma mistura para uso externo; o “unguento”, gorduroso e à base de resinas; o “sinapismo”, um tópico de ação revulsiva, como o “cataplasma” de mostarda; o “emplastro”, outro tópico de ação emoliente; o “vesicatório”, um irritante destinado a produzir vesículas na pele; o “cáustico” e o “cautério”, onde se utilizava o ferro e pedra incandescentes, e com esses expedientes dolorosos tentava-se a exteriorização da doença, com o escoamento dos maus humores; e finalmente o “revulsivo”, outro irritante destinado a expelir humores.

Em 1824, apenas quatro anos depois da fundação da vila de Nova Friburgo, faleceu o boticário Léopold Boelle, nomeado pelo rei D. João VI. Em razão disso, foi realizado o “sequestro” dos bens da botica contendo utensílios, drogas e “trastes”. Graças a esse inventário, podemos penetrar e conhecer uma botica de Nova Friburgo do início do século XIX, e nos aventurar a procurar entender que função tinha cada uma daquelas drogas. Encontravam-se na botica: bálsamo católico, copaíba, vinagre de chumbo, óleo de amêndoa doce, espírito de seis onças, azeite doce, espírito de casca de laranja, resina de pau santo, aguarrás, óleo de linhaça, óleo de lavanda, potassa crua, éter, óleo de canela, almíscar, óleo de rícino, óleo de hortelã, óleo de cravo, tártaro emético, sal amoníaco, ceromel (sic), sangue de dragão, sulfato de zinco, pó de Joana, azougue, cremor tártaro, sal de globo, sal amargo, oximel, pomada oxigenada, pomada mercurial, tintura de bogari composta, ácido sulfúrico, goma guta, estoraque líquido, ácido muriático, água forte, óleo de linho, pedra pomes, manganês, semente de mostarda, almíscar do Brasil, arsênico, jalapa, serpentárias, pedra lipes (sic), açafrão, quentárias (sic), ácido cavalinho, coluquentes (sic), carbonato de potássio, carbonato de amoníaco, cural, pimenta-do-reino, água rosada, espermacete, elevo negro, enxofre em canudo, fezes de ouro, semente de Alexandria, sulfato de magnésia, raízes de genciana, poara, extrato de alcaçuz, goma de alcatifa, emplastro mercurial, almíscar de Judá, alvaide, emplastro de molioto, zarcão, sal de chumbo, calomelanos, ópio, azebre, resina de jalapa, raiz de terebintina, goma de alvão, raiz de labaça, raiz ranger, canela, manjericão e raiz de salsa da terra. A botica continha ainda 58 livros de farmacêutico “de grandes qualidades”, em língua estrangeira. E assim, conhecemos um pouco do que os nossos antepassados utilizavam, em Nova Friburgo, no início do século XIX, para se curar de suas enfermidades.

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Janaína Botelho

Janaína Botelho

História e Memória

A professora e autora Janaína Botelho assina História e Memória de Nova Friburgo, todas as quintas, onde divide com os leitores de AVS os resultados de sua intensa pesquisa sobre os costumes e comportamentos da cidade e região desde o século XVIII.

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