Uma grande catarse

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

A japonesinha, 15 anos de idade no máximo, acredito eu, samba feito gente grande numa das alas da escola de samba que desfila à minha frente. Aliás, uma cena comum até essa altura do desfile: crianças, muitas crianças e muitos jovens na avenida. A impressão constante no ar é de que os foliões de Friburgo ainda fazem carnaval à moda antiga, com confete e serpentina pra todo lado — ainda bem. Vê-se mais crianças do que bundas se remexendo. Na segunda fila, atrás da japonesinha, uma outra japonesa, mais velha e com ares de síndica, dança e se sacoleja ao som do samba-enredo. Sua mãe, talvez, ou até mesmo sua avó — Deus sabe como os japoneses vivem bastante. Não é um carnaval da família, como muito se propaga por aí, com muito orgulho e pouca razão, mas um carnaval onde a família pode encontrar-se.

A cena familiar nipônica abriu meu domingo de carnaval e foi a primeira anotação no caderninho que eu uso pra organizar as ideias. É a minha estreia na avenida — eu nunca havia assistido um desfile assim, ao vivo, de um lugar tão privilegiado. Até então, as tentativas todas tinham sido me esgueirando entre as calçadas da Alberto Braune, enxergando penas por cima das arquibancadas. E o carnaval é uma experiência sensacional quando vivida de perto.

As pessoas são tomadas por uma espécie de catarse, um transe que começa na prefeitura e só termina na Caixa Econômica Federal. Ali onde eu estava, sentada e confortável, com dois Snickers e metade de uma cocada na bolsa, deu pra entender a dureza que é o carnaval. Tinha sandália de couro sambando que machucava o meu pé só de observar. Fantasias grossas e pesadas, de palha, de plástico, de papel celofane, um calor que deve até fazer parte do processo de transe. Em dado momento, vi que a fantasia de uma das integrantes de uma escola se soltou de alto a baixo, expondo uma jardineira branca que ela usava por baixo. A moça passou o resto do desfile dançando numa posição meio fetal, meio Globeleza — e sorrindo, o tempo inteiro. Era o transe.

E você não vê uma garrafinha d’água, uma barra de cereais, nada — a galera vai a seco, no talento e no gogó. Minto — na apuração, uma das escolas foi punida por uma garrafa pet com água ter ficado visível num canto do carro. Achei um absurdo. E eu vi a garrafa, confesso que vi. Fiquei dois dias com o pescoço doendo de tanto esticá-lo em busca de detalhes lá na frente. Mesmo a escola passando inteira diante de mim, eu continuava olhando lá pra longe na avenida, pra não perder nada, nem mesmo a imagem distorcida e dançante no horizonte. Pra quem mora na serra, o fim da avenida é horizonte.

Perto de mim estavam outros repórteres, que vez ou outra espichavam seus olhos compridos para o meu caderninho de letras garranchadas. Mas o que eu anotei na cabeça jamais poderia ser lido. Não tem como palavralizar. Éramos só eu e cinco mil pessoas desfiando diante de mim vivendo aquele transe. Ao primeiro batuque eu já não era mais repórter — era foliã desde criancinha.

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Ana Blue

Blue Light

O que dizer dessa pessoa que a gente mal conhece, mas já considera pacas? Ana Blue não tem partido, não tem Tinder, é fã de Janis Joplin, parece intelectual mas tem vocação mesmo é pra comer. E divide a vida dela com você, todo sábado, no Blue Light.

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