Meu nome não é Beethoven

sábado, 18 de abril de 2015

Eu não posso dizer que sou grande amante dos animais, mas também não sou do tipo que chuta o rabo do gato quando as coisas não vão bem no ambiente doméstico. Digamos que seja uma relação de coexistência pacífica, sem maiores atritos, a não ser quando a cachorra enorme de gorda que mora na rua da escola das crianças resolve bocejar. Ela olha para dentro do meu cérebro, se levanta, empina o dorso e abre aquele bocão de mil e novecentos dentes. Rola um medo de quinze segundos ali, na selva da Rua Darcília dos Santos, me sinto uma mamãe zebra com os filhotes desprotegidos a alguns metros da leoa marrom de boca aberta. Faz parte. Se bem que, pra quem vive se esgueirando entre os camburões na rua, cachorro de rua transmite mais pena que raiva.

A carrocinha que circula o Cordoeira nunca apreendeu cachorros. “Menos mal”, diriam alguns. Mas interpela todo o tipo de gente que encontra, não importa se bandido ou professor. Eu já não entendia como funcionava a lógica jurídica do mundo, mas ali me tornei cética profissional. Ali eu descobri o valor quase nenhum do homem. Tive que me acostumar a ver as paredes da minha casa como cenário lúgubre para páginas policiais. 

Enfim, falei sobre cachorros de rua e homens de valor nenhum apenas como introdução para um caso específico sobre cachorros de rua e homens de valor nenhum. Que Adriana não nos ouça, mas vez em quando me distraio aqui no jornal lendo na internet notícias absurdas demais para serem verdade. Tanto que costumo investigar, pra ver se não é um site sensacionalista qualquer, não é possível que homem chegue tão frequentemente ao limite asqueroso de si mesmo. E eis que hoje o Yahoo me anuncia por e-mail que uma pastelaria no Rio de Janeiro servia carne de cachorro no recheio dos pastéis, além de manter funcionários trabalhando em regime escravo.
Juro, de pés juntos por mamãe mortinha atrás da porta, que a primeira coisa que eu pensei foi: “Caramba! Será que eu já comi lá?”. Não sou dada à comida chinesa, mas, quanto menos dinheiro eu tenho, mais o “lalanza/cazu” tem lá os seus encantos. Geralmente naqueles dias que separam o salário do dia do vale. Que egoísmo meu. Cachorros mortos e homens escravizados, e eu pensando no pleno funcionamento do meu intestino, tentando lembrar se comi pastel chinês nas últimas vezes que fui ao Rio. 

Diariamente comprovo, por experiência própria, que se você pretende nutrir algum tipo de respeito ou fé pela humanidade, as seções interativas de comentários nos sites não são o melhor lugar para se frequentar. É a internetalização daquele tipo de gente que você não quer por perto, que trata a mulher como estorvo, estrangeiro como inimigo e diferente como ameaça. É o tipo de gente que aplaude carrocinhas, de animais e de homens. Mas os comentários dessa matéria entoavam uníssonos sobre a nobreza dos animais, sobre a tristeza do destino dos totós que viraram carne moída, os indefesos cães sem nome e sem pedigree, diferentes dos milhares de Beethovens de raça espalhados pelo Brasil. Falar de cachorro é politicamente correto.

O triste foi quase ninguém ter lembrado dos homens escravizados. Da dura rotina de trabalho, das 5h30 às 23h. Homens que vieram do outro lado do mundo achando que aqui, veja só, teriam melhores oportunidades (a China deve estar mesmo horrível). Nenhum adendo sobre a nobreza destes homens, o contrário até: a xenofobia transbordou da tela e escorreu pelo meu teclado. Até quando os homens não valerão nada?

Não posso dizer que sou grande amante dos homens, mas também não sou do tipo que chuta o rabo do próximo quando as coisas não vão bem no ambiente doméstico. 

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Ana Blue

Blue Light

O que dizer dessa pessoa que a gente mal conhece, mas já considera pacas? Ana Blue não tem partido, não tem Tinder, é fã de Janis Joplin, parece intelectual mas tem vocação mesmo é pra comer. E divide a vida dela com você, todo sábado, no Blue Light.

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