Comer em família é um ritual que nos aproxima e nos ensina sobre convivência. Nessa partilha olho no olho, não deixamos a afetividade esfriar.
Em algumas culturas, o ritual de comer com avós, pais e primos reunidos é ancestral, anterior à própria mesa
Refeições em família combinam conversas triviais com assuntos importantes, intimidade com estranhamento, risadas e discussões, macarronada com “você não sai daqui se não comer os legumes”. Hoje, quando podemos bloquear, nas redes sociais, publicações de pessoas com as quais não concordamos, os parentes acabam sendo a única esfera na qual precisamos conviver com a diferença.
Dizem que amigos são a família que a gente escolhe. Partindo do mesmo raciocínio, pai, mãe, irmãos, tios seriam, então, amigos impostos que precisamos aturar. E isso pode ser desconcertante e maravilhoso ao mesmo tempo.
Em algumas culturas, o ritual de comer com avós, pais e primos reunidos é, veja só, ancestral. “Anterior à própria mesa”, afirma a historiadora Mariana Corção. “No Ocidente, o hábito de fazer as refeições com os seus à mesa se popularizou na cultura burguesa do século XIX, que cultuava as relações familiares e a vida privada”.
Era o prenúncio dos comerciais manjados de margarina que vemos na televisão — com uma família de classe média que acorda alegre, magra e bem-vestida — para tomar o café da manhã em conjunto, diante de uma mesa excepcionalmente farta.
Por sua vez, a ideia da mesa como o lugar adequado para a refeição teria se firmado ainda na Antiguidade. “Em Roma, era o local em que ficava exposta a comida. Vem daí a expressão está na mesa”, conta Mariana.
Comer sentado
Com o tempo, o móvel se cobriu de sacralidade. Expressões como “mesa do rei”, “mesa dos despachos” e “mesa do tribunal” associam essa plataforma com o lugar do conselho, da sentença e do exame decisório, como lembrou Luis da Câmara Cascudo em
A História da Alimentação no Brasil (Global).
Os simpósios dos gregos e romanos foram, então, substituídos pelo ritual cristão da comunhão do pão em torno de uma mesa, como revelam grande parte das representações da última ceia — antes, os homens comiam debruçados, deitados em divãs. E passaram a se alimentar sentados. “A oração abria e fechava o ritual”, acrescenta a historiadora.
As noções de etiqueta à mesa surgiram com as regras conventuais, quando o comer era feito em silêncio ou sob a escuta de alguma leitura. Na Idade Média, em que a cultura dos povos bárbaros se mesclava com a cristã, a sala de refeição também era lugar de violência. O principal instrumento: a faca, a mesma usada na caça.
“As primeiras regras de convivência e educação sugeriam que não se matassem à mesa”. Pessoas ou um irmão bem implicante, dependendo do caso.
De todo modo, o ritual familiar da alimentação compartilhada se tornou um momento propício para a afetividade, um descanso da vida exterior, em que se pode desfrutar daquele tempero caseiro e daquela convivência já tão conhecidos.
Mais olho no olho
Hoje, saímos da esfera privada e optamos por refeições práticas nos restaurantes. “De certo modo, acabamos mantendo o foco na comida, que merece até foto antes de ser consumida”, pondera Mariana. Essa obsessão pelos pratos e pelas redes sociais destitui a refeição compartilhada do olho no olho, da atenção ao outro, do prazer de sentar à mesa com gente querida. Faz do menu um troféu social, um símbolo de status. Em casos extremos, esse novo jeito de saborear pode favorecer distúrbios alimentares e uma seletividade exacerbada de frutas, legumes ou carnes em um contexto privilegiado de abundância.
Na Grã-Bretanha, a agência de estudos de mercado Mintel publicou uma pesquisa curiosa sobre o tema. Nos últimos cinco anos, a venda de mesas de jantar caiu 8% entre os britânicos, ao passo que a de móveis de escritório subiu 40%. Cerca de 25% da população não tem um móvel próprio que possa fazer uso para jantar em casa. Entre os que têm, menos de um terço ainda o utiliza em ocasiões especiais, como o Natal e o Ano Novo.
Para os pesquisadores, os divórcios e a falta de tempo da vida urbana seriam as principais justificativas para o abandono desta peça tão simbólica do nosso mobiliário doméstico.
(Fonte: vidasimples.co/relacionamentos)
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