Resposta ao Anjo Curioso

Christiano Madeira*
quarta-feira, 13 de maio de 2015
por Jornal A Voz da Serra

Sinto-me uma pessoa privilegiada. Afinal, sou friburguense. Sou homem de montanha, acostumado com o frio da serra. Tenho 33 anos, e boas memórias de uma cidade que costumava ser bem menor e bem mais fria. Tenho tenras lembranças do saudoso Hotel Sans Souci, do aconchego do Chez Vouz Bar, onde tive a preciosa oportunidade de ouvir um pianista incrível, o saudoso Harry (sobrevivente da Segunda Grande Guerra que tocou até para presidente da república), embalando o happy hour numa noite qualquer de semana. Ainda na infância meu pai me apresentou a música erudita e isso foi com certeza fator importante para desenvolver minha sensibilidade para a vida.

Acabei de dividir momentos legais que eu vivi, porque é justamente disso que estamos falando. O motivo peculiar pelo qual me sinto privilegiado é o que tenho dentro de mim como mais importante: a vida. E, como parece claro, quanto mais delicada ela for, quanto mais frágil ela se manifesta, mais deverá ser protegida pelos mais fortes. Claro que esse raciocínio nos leva aos animais.

Meu querido irmão, comprometido jornalista deste jornal espetacular, me pediu que escrevesse um artigo sobre o direito dos animais, pois sou advogado. De pronto aceitei, escrevo sim, mas não sem antes fazer um introito ao valor de cada vida, de cada forma de manifestação do maior mistério do universo (juntamente com ele mesmo, tão vasto).

Embora seja uma pessoa introspectiva, caseira, muito calma e de poucas atividades que envolvam grandes grupos, de infelizmente poucos amigos humanos, tive a oportunidade de conhecer e experimentar o amor verdadeiro, aquele que nunca mereci, advindo dos animais.
Dia desses passei por um dos momentos mais bonitos da minha vida. No escuro da noite, prestes a dormir, peguei o celular da minha noiva e coloquei no YouTube um vídeo de Jascha Heifetz para ouvir . Para quem não conhece, muitos acreditam que ele foi o maior violinista de todos os tempos.

Eu já conhecia o vídeo e a música. Coloquei para tocar para que minha filha — uma yorkshire fêmea de dois anos, de nome Sofhie — pudesse ouvir. Coloquei num volume bem baixo, para que o ambiente ficasse ainda mais agradável. Ela, que sempre dorme perto dos meus pés, pela primeira vez veio dormir perto da minha cabeça. Ficou olhando para o aparelho. Como o YouTube não toca se bloquearmos o celular, a luz da tela me permitia ver seu rosto imaculado observando e ouvindo. Depois estendeu a pata, tentando tocar o local de onde vinha o som. Em seguida, deitou sua pequenina cabeça no travesseiro e ficou lá, com os olhos abertos, fitando o vazio. Ela nunca faz isso. Quando percebi, uma lágrima minha descia.

Eu poderia dizer aqui que o direito dos animais ainda está topograficamente mal localizado, pois ainda é tratado como braço do direito ambiental, numa visão autorreferente. Poderia dizer que maltratar animais é crime — e é, art. 32 da Lei de Crimes ambientais —, e que a pena branda nela prevista pode mudar com a Lei Tripoli. Poderia aqui manifestar meu repúdio ao antropocentrismo de nosso direito (como reflexo do egoísmo de nossa sociedade). Poderia fazer até a observação instigante de que nunca vi um egoísta feliz.

Prefiro, no entanto, apenas compartilhar o que sinto como advogado, como ser vivo, como cidadão consciente e grato, muito grato, mas muito grato mesmo, por ter conhecido esses nobilíssimos amigos, seja acolhendo-os enquanto eles me acolhiam, seja resgatando-os enquanto me resgatavam, seja dividindo uma lareira ou uma bela paisagem, seja ouvindo música com eles.

Lembro-me daquele filme muito bonito, Cidade dos Anjos, em que o anjo curioso pergunta a uma menina que morreu o que ela mais gostou de ver na Terra.

Se me perguntassem, eu saberia o que dizer.

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TAGS: direito dos animais | animais | causa animal
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