Panc: Brasil tem cinco mil plantas comestíveis

Alimentação natural, local, orgânica e agroecológica
sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017
por Ana Borges
Valdely Kinupp na torre da Reserva Florestal Adolpho Ducke, 42 metros acima da floresta amazônica (Foto: arquivo Pessoal)
Valdely Kinupp na torre da Reserva Florestal Adolpho Ducke, 42 metros acima da floresta amazônica (Foto: arquivo Pessoal)
O mestre e doutor Valdely Ferreira Kinupp, do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas (Ifam), é orientador credenciado no Programa de Pós-Graduação em Botânica do Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia), pesquisador e divulgador das plantas alimentícias não convencionais - Panc.

“Plantas alimentícias não convencionais são os frutos, frutas, folhas, flores, rizomas, sementes e outras estruturas ou partes das plantas que podem ser consumidas pelo homem”

Valdely Ferreira Kinupp

Nascido em Cantagalo, com menos de dois anos mudou-se com a família para Nova Friburgo. Estudou no Colégio Estadual Jamil El-Jaick (Ceje) e aos 19 anos entrou para a Universidade Estadual de Londrina (PR), onde se formou em Ciências Biológicas. Ali deu os primeiros passos para uma carreira que, ao longo de mais de 20 anos, se consolida com estudos e pesquisas divulgadas em publicações especializadas.

Sua experiência na área de Botânica, com ênfase em Botânica Econômica, Herbário e Biodiversidade, o habilitou para trabalhar em questões como alimentos vegetais não convencionais, recursos genéticos vegetais, segurança alimentar, florística, olericultura e agroecologia. É de lá, da floresta amazônica, onde vive, que o professor concedeu esta entrevista exclusiva.  

Segurança e soberania nutricional

Segundo ele, este é um assunto pertinente, não só para Friburgo, mas para a Região Serrana e todo o Brasil. “A serra fluminense, em particular, com suas peculiaridades, é perfeita para o cultivo das Panc, para o seu aproveitamento. Elas não fazem parte do nosso dia a dia, da alimentação cotidiana das pessoas, da merenda escolar. Ainda não estão, suficientemente, nos cardápios, restaurantes, nos lares e feiras. No entanto, devem ser melhor observadas até por uma questão de segurança e soberania nutricional, e eu diria até, de soberania nacional”, argumentou.   

O professor explica que boa parte destas plantas são mal estudadas: tanto do ponto de vista  bromatológico, isto é, da qualidade nutricional destes alimentos, quanto em relação à tecnologia, engenharia e processamento dos alimentos. São mal estudadas também do ponto de vista químico, bioquímico, fitotóxico, e até em seus aspectos biológicos e agronômicos.

“O estudo das Panc é um campo vastíssimo para pesquisas, em todos os níveis de graduação: mestrado, doutorado, pós-doutorado, o que abre um grande leque para o Brasil se destacar em periódicos internacionais, com publicações inéditas da famosa mega fitodiversidade brasileira, tão negligenciada e sub-utilizada, na sua forma mais importante que é a alimentação”, defendeu.

E emendou: “A biodiversidade que não entra pela boca não tem valor, é abstrata, não gera emprego, não gera renda, não contribui para a conservação dos habitats, para a conservação da natureza, para a manutenção do ser humano, dos agricultores, dos extrativistas no campo, nas florestas. As Panc é que têm apelo social, político, ambiental, econômico. É uma visão bastante holística, sistêmica, e por isso essas plantas estão fazendo tanto sucesso no Brasil e no mundo”.

O professor lembra que hoje, as pessoas estão cada vez mais voltadas para uma alimentação natural, local, orgânica e agroecológica. Muitas plantas silvestres, com flores e folhas comestíveis, batatas (raízes), caules e outras partes de interesse alimentício, são muito mais nutritivas do que os alimentos convencionais.

“Muitos são beneficiados geneticamente. O aprimoramento genético no Brasil e no mundo é feito majoritariamente para aumentar a produção. Raramente se vê alguém falando que é para melhorar o sabor ou o valor nutritivo. O que o indivíduo quer saber é se vai produzir mais soja, milho, laranja, algodão, girassol, por hectare. Eles querem biomassa, querem quantidade”, revelou.

A expansão comercial e gastronômica das Panc   

É grande o interesse dos chefs pelas Panc. Valdely conta que desde 2002 vem dando palestras, principalmente no Sul do Brasil. Com mais frequência participa de congressos, após a publicação de sua tese sobre o tema, em 2007, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Este trabalho tem recebido expressivo número de consultas vindas de inúmeros países.

Profissionais da alta gastronomia o procuram desde a publicação do livro “Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANC) no Brasil”, em coautoria com Harri Lorenzi (Editora Plantarum, 2014).

Um deles foi o chef Alex Atalla, que o convidou para participar de eventos em São Paulo. “Moro num sítio [chamado Panc, naturalmente] onde tenho a minha produção de plantas alimentícias, faço experiências e abasteço o comércio”. Após o lançamento do livro, novos convites surgiram para eventos, em vários estados, além de entrevistas em jornais de grande circulação, no Rio e São Paulo. Tudo isso tem ajudado a divulgar as Panc.   

“Há uma grande demanda reprimida por esses produtos. Agora precisamos massificar essa descoberta, ampliar o alcance dessa novidade. Cultivar novos hábitos alimentares, reeducar as famílias para ter um novo olhar sobre o que nos rodeia. Não se trata de trocar um tipo de alimentação por outra, mas de trazer novos elementos para enriquecer o cardápio do brasileiro. Tenho irmãos feirantes aí em Conselheiro e Bairro Ypu, e uma das melhores goiabadas cascão do Brasil [Goiabada Shott] é feita pela minha irmã, no distrito de São José, em Bom Jardim”, disse.

Por sua história, nada mais previsível que Valdely Kinupp tenha se revelado um bom cozinheiro, “inventor” de cardápios baseados em suas descobertas. Caminho natural do professor que nasceu numa família simples, formada por lavradores, que teve seu interesse despertado para as plantas, ainda na infância, quando vivia num sítio, zona rural de Parada Augusto Alves, em Amparo, com nove irmãos. A busca por alimentos não convencionais, que nem sabiam que tinha essa conotação, era algo comum para aquela família.

“Meu pai trazia folhas, verduras, frutas, como complemento alimentar, e fui me interessando por aquelas novidades, de gosto diferente. Ficava curioso, queria saber o que era, de onde vinha. Vem daí a minha paixão pela botânica, sem nem saber o que era botânica, que me levou a querer estudar ciências biológicas, quando fui pra universidade. Desde que comecei não parei mais de estudar, de querer saber mais, aprender mais, me especializando, fazendo mestrado, doutorado, publicando trabalhos, pesquisas”, lembrou.

Demanda induzida

Segundo Valdely, a expansão das Panc é fato consumado, há interesse em todas as regiões do Brasil, é referência que se estende entre donas de casa e profissionais. Na gastronomia, a adesão de chefs como a carioca Roberta Sudbrack é forte evidência da importância das Panc na nova gastronomia que toma conta das cozinhas ao redor do mundo. É o que ele chama de demanda induzida.

“Chegue na feira e, em vez de levar para casa o que leva a vida inteira, semana após semana, pergunte se tem botão de ouro, capiçoba, picão branco, serralha, urtigas. Diversifique, amplie seus horizontes. É a única forma de desmantelar essa cadeia de monoculturas, essa ideia arraigada que as pessoas têm de que só dá para comer repolho, alface, couve, brócolis, couve-flor. Muitas hortaliças têm origem asiática, europeia, e o agricultor tem que comprar semente, muda importada. Está na hora de sair um pouco da manjada salada brasileira, que nada tem de brasileira, composta de alface, tomate, pimentão, pepino”.  

De acordo com Valdely Kinupp, o Brasil tem um “mega potencial com as Panc que está sendo negligenciado, quando deveria ser até uma política de Estado”, defendeu.

Vida acadêmica

Valdely Kinupp é graduado em Ciências Biológicas pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), mestre em Ciências Biológicas (Botânica) pelo Inpa, e doutor em Fitotecnia-Horticultura pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É autor de vários trabalhos e teses, e do livro Plantas Alimentícias Não Convencionais (Panc) no Brasil, em coautoria com Harri Lorenzi (Editora Plantarum, 2014).

No livro, com nomes botânicos, descrição de características, usos, propagação, fotos e receitas práticas, Valdely e Lorenzi informam que “cerca de 10% das plantas do planeta são comestíveis e que o Brasil tem 50 mil espécies, o que significa que cerca de 5.000 poderiam ser usadas na alimentação. Desde 2014, foram vendidos mais de 20 mil exemplares.

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TAGS: botânica | plantas comestíveis
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