Egberto Gismonti: do Carmo para o mundo, passando por Nova Friburgo

segunda-feira, 27 de setembro de 2010
por Jornal A Voz da Serra

Dalva Ventura

 

Uma pena que Egberto Gismonti, o grande homenageado do II Festival Intercolegial de Música do Colégio Nossa Senhora das Dores, não estará presente ao evento, devido a compromissos profissionais assumidos anteriormente, em turnês fora do país. Apesar de não ter nascido em Nova Friburgo, Egberto passou a maior parte de sua infância e juventude na cidade, onde até hoje mora grande parte de sua família.

Já era tempo de Nova Friburgo homenagear Egberto Gismonti, por sua história, dedicação e protagonismo no universo da música e, também, pelos vínculos com nossa cidade e região. Com 40 anos de exercício profissional, 63 CDs pessoais e outros tantos como produtor ou arranjador, além de 30 filmes, 20 balés e 25 peças de teatro, Egberto Gismonti é uma das personalidades mais brilhantes do cenário brasileiro. Além de toda a sua carreira musical, ele administra três editoras, o selo Carmo, relacionado à ECM-Records e à EMI Music.

Nesta entrevista especial, Egberto fala de sua infância em Nova Friburgo, das primeiras apresentações, de sua família e do seu carinho pela cidade.

 

A VOZ DA SERRA – Você nasceu no Carmo, mas cresceu em Nova Friburgo. Quais as memórias mais marcantes de sua infância?

EGBERTO GISMONTI - Nasci e vivi no Carmo até os quatro, cinco anos. Antes de mudarmos para Friburgo, passamos um ano e pouco em Duas Barras e Sumidouro. Foi em Friburgo que aprendi a estudar música, sobretudo pela determinação dos meus pais. Recordo-me com saudade das matinês nos clubes dos 50 e Xadrez, das primeiras namoradas, dos primeiros sonhos de futuro, das primeiras perdas com sofrimento profundo, principalmente a de meu pai, em 1964. Lembro-me também dos primeiros amigos “estrangeiros”, isto é, que vinham do Rio ou de Niterói passar as férias na cidade. As distâncias eram as mesmas das de hoje, mas o acesso não. Também me recordo da inauguração do Externato São José, diante da matriz, onde estudei. Houve uma festa e o piso da sala principal, onde todos estavam, afundou. Uma boa parte dos convidados sofreu até pequenas consequências.

 

A VOZ DA SERRA – Quais os outros colégios em que estudou?

EGBERTO GISMONTI – Fui semi-interno no Colégio Anchieta, onde aprendi a dimensão da sonoridade do órgão Hammonf B3, que me era disponibilizado para sonorizar as missas, pelo órgão e pela música de Bach que eu estava descobrindo. Assim, assistia e tocava em várias missas todos os dias. As apresentações no teatro do Anchieta, no Clube de Xadrez, no Clube dos 50 e no Country Clube formam uma lembrança bastante boa da minha infância.

 

A VOZ DA SERRA – Onde vocês moravam?

EGBERTO GISMONTI - Nosso primeiro endereço em Friburgo foi na Rua General Pedra (atual Dante Laginestra), onde mais tarde foi construído o Edifício Mônaco. Enquanto esperávamos a construção do edifício, moramos na Avenida Euterpe. A cidade ainda tinha o trilho do trem que cortava toda a praça da matriz. Não me lembro de ver ou ouvir o trem passar – acho que nesta época já havia sido desativado. A cidade funcionava bastante bem naquela época, de forma natural. Esta é a memória mais marcante que tenho de todas as épocas vividas em Friburgo.

 

A VOZ DA SERRA – Aqui você começou seus estudos musicais. Quem foram seus primeiros mestres?

EGBERTO GISMONTI – Minha primeira professora de piano, ligada ao Conservatório Brasileiro de Música, foi a senhora Elza Xavier de Brito. Foram muitos anos de estudo até a formatura. Na época cursávamos oito, nove anos de piano, fazendo em paralelo os cursos de teoria musical, harmonia, canto coral etc. A partir do quinto ou sexto ano, não estou certo, as provas eram feitas em Nova Friburgo mesmo, por uma banca de professores do Conservatório Brasileiro de Música do Rio de Janeiro.

 

A VOZ DA SERRA – Quando criança, você passava muitas horas ao piano? Sobrava tempo para brincar?

EGBERTO GISMONTI – Lembro do dia em que estava brincando no chão da garagem da casa da Rua General Pedra, no final da entrada gramada, com os dois caminhos de pedra para os pneus do carro. Eu tinha cerca de 6 anos. Minha mãe me chamou e disse: “Vem conhecer sua professora de piano, dona Elza Xavier de Brito”. Apesar de passados cinquenta e tantos anos, me recordo perfeitamente de todos esses detalhes. Daí em diante, foram aulas semanais estudando e seguindo o método estabelecido pelo Conservatório Brasileiro de Música do Rio de Janeiro, com todos os exercícios necessários à técnica exigida para os pretendentes a concertistas ou solistas. Não me lembro de estudar muitas horas por dia. O estudo de piano e dos outros instrumentos que toco foi assimilado com relativa facilidade. Tenho a impressão de que sou instrumentalista por natureza. Quanto às audições exigidas pelo Conservatório, sempre participei com gosto, torcia para chegar o dia e a hora de tocar.

 

A VOZ DA SERRA - E agora? Você ainda se exercita muitas horas por dia?

EGBERTO GISMONTI – Na realidade, eu estudo um pouco todos os dias, para manter a técnica viva. Tocar é diferente. É algo reservado para os momentos de maior expressão. Sua pergunta aponta para o conceito que tínhamos no período estudantil. Lembro que, após mais ou menos 40 anos de exercício profissional, com 63 CDs pessoais, outros tantos como produtor ou arranjador, cerca de 30 filmes, 20 balés, 25 peças de teatro, administrando três editoras, o selo Carmo, relacionado à ECM-Records e à EMI Music, turnês, orquestras, eu aprendi a “tocar” a minha vida antes de qualquer instrumento.

 

A VOZ DA SERRA – Você também se tornou conhecido por seu trabalho voltado para o resgate da cultura nacional. O que tem a dizer sobre isso?

EGBERTO GISMONTI – Desde o final da década de 80, graças ao estudo do Direito relacionado à composição, consegui administrar a comercialização dos fonogramas de meus discos produzidos para a EMI-Odeon e outras companhias. A partir daí, me envolvi cada vez mais com o direito e suas variações, alargando meu interesse pela palavra, pela literatura e pela história brasileira. No ano 2000 cumpri a encomenda feita pelo Ministério da Cultura, do governo Fernando Henrique Cardoso, compondo a Sinfonia dos 500 Anos, Mestiço e Caboclo. Recentemente escrevi a “abertura” do novo livro do Manoel de Barros, lançado pela Editora Azougue. Também tenho participado intensamente na releitura das cartas, anotações e livros do Mário de Andrade, na procura dos volumes que se seguem ao primeiro Melodias registradas por meios não mecânicos. Resumindo: a música abriu a janela da minha vida diante do Brasil, que procuro conhecer cotidianamente.

 

A VOZ DA SERRA - Qual o instrumento de sua predileção?

EGBERTO GISMONTI – Quando toco: aquele que eu estiver tocando. Quando ouço: aquele que produzir a música que necessito para viver.

 

A VOZ DA SERRA – Egberto, você passa muito tempo em turnês pelo mundo afora. Sua vida tem alguma rotina?

EGBERTO GISMONTI – Na realidade não tenho uma rotina, porque, como costumo dizer, moro no Brasil, mas demoro no exterior. Para simplificar, somando os períodos, fico mais ou menos seis meses no Brasil e outros seis meses fora. Quando estou no Rio, moro no Jardim Botânico, onde o Brasil da Mata Atlântica continua sendo uma paisagem maravilhosa, esperançosa e estimulante.

 

A VOZ DA SERRA – Sei que você mantém uma relação muito estreita com os índios. Fale um pouco sobre isso.

EGBERTO GISMONTI – Desde os anos 80, repito de tempos em tempos a viagem ao Posto Leonardo, próximo das aldeias Iaualapeti, para reencontrar meus amigos, o pajé Sapain, os caciques Raoni e Aritana, ou a pajé Cabocla da Ilha de Marajó, Zeneida Lima. Outras viagens fazem parte da minha necessidade de aprendizado e aproximação do Brasil.

 

A VOZ DA SERRA - Você está com quantos anos de carreira? Já teve vontade de parar, de deixar de viajar?

EGBERTO GISMONTI – São mais de 40 anos de carreira. Parar não é, ou não seria, uma decisão possível. Nessa profissão que exerço, “tocar, pensar e inventar”, o acúmulo de questões estimula a vida, que passa a ser dependente das novas questões... Não posso imaginar minha vida sem as questões que devo estudar diariamente.

 

A VOZ DA SERRA – E quais são estas questões?

EGBERTO GISMONTI – Quer um exemplo? Nos últimos 12 meses fiz música para quatro filmes: Tempos de Paz, Wenceslau e a Árvore do Gramophone, Chico Xavier e Senhor do Labirinto. No momento eu me dedico às anotações pessoais de Dom Hélder Câmara, para cumprir a encomenda da Cantata comemorativa dos cem anos deste brasileiro, que representa, mais do que qualquer outro, o exercício prático dos direitos humanos.

 

A VOZ DA SERRA – Você se definiria mais como compositor, instrumentista ou arranjador?

EGBERTO GISMONTI – Definitivamente, não tenho preferência.

 

A VOZ DA SERRA - Já sentiu que não tinha mais inspiração?

EGBERTO GISMONTI - Qualquer vício se adquire com a repetição e o tempo. Não se para subitamente. Mas já passei por momentos em que as questões não eram estimulantes.

 

A VOZ DA SERRA – Você é de uma família toda musical. Seus filhos também seguem esta trilha?

EGBERTO GISMONTI – Meus dois filhos, Bianca e Alexandre, com 27 e 28 anos, são músicos profissionais, com carreiras independentes da minha, e me orgulho muito deles.

 

A VOZ DA SERRA – Você é mais conhecido e respeitado fora do Brasil. Isso o aborrece?

EGBERTO GISMONTI – Como sua pergunta parte de uma dedução, divido a resposta em dois pontos. Considerando que “fora do Brasil” representa, em termos de população e geografia, territórios maiores do que o Brasil, pergunto: que razão eu poderia ter para ficar aborrecido com o bom resultado da plantação das minhas ideias em tantos países estrangeiros? E mais: desde muitos anos, após o reconhecimento benevolente de tantos países (incluindo o Brasil), aprendi que este reconhecimento é que torna minha música viva. Eu não tenho a menor importância. Aliás, acredito que o que fazemos deve ter mais importância do que o que somos... Por mais que pareça que o que fazemos seja consequência do que somos. O que fazemos é consequência do que as pessoas determinam que somos. Mas esta é uma conversa mais longa... Quem sabe um dia desses, com a querida Geni (Nader), tomamos uma café e conversamos mais um pouco.

 

A VOZ DA SERRA – Você vem muito pouco a Nova Friburgo, não?

EGBERTO GISMONTI – Realmente vou menos a Friburgo do que gostaria, menos ainda ao Carmo, e a muitos outros lugares que são parte da minha vida. Mas, o que fazer?

 

A VOZ DA SERRA – Com qual de seus mais de 60 CDs você se identifica mais?

EGBERTO GISMONTI – Não tenho preferência especial, exceto por quatro LPs duplos que fiz junto a Ferreira Gullar, Jorge Amado, João Cabral de Mello Neto, Geraldo Carneiro e Marilda Pedroso. Infelizmente esses LPs – Antologias Poéticas – não foram reeditados e se perderam nos arquivos da Som Livre. Quem sabe um dia eles aceitem um acordo para um relançamento?

 

A VOZ DA SERRA – Você é um dos únicos músicos brasileiros donos de seu próprio selo. Em que isso mudou sua carreira?

EGBERTO GISMONTI – Refaço sua colocação. Sou um dos únicos donos da comercialização dos fonogramas, e que possui um selo representado em 42 países. Mudou pouco, mas expandiu muito a plantação. Talvez seja oportuno lembrar que no gênero de música que faço, apesar das várias tendências que experimentei, o compositor ou instrumentista é a sua própria rádio, TV ou jornal, até que uma quantidade razoável de seguidores comecem, involuntariamente, a espalhar as sementes lançadas.

 

A VOZ DA SERRA – Você diria que é um músico experimental?

EGBERTO GISMONTI – Considerando que aquele que experimenta e conclui suas experiências na vida é um experimental, sou, sim, uma pessoa experimental. Músico experimental, com todo o ranço da cultura europeia dedicada à música contemporânea, eletroacústica etc, definitivamente, não, não tenho a menor relação com isso.

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