Devolvendo a cidade para as pessoas

Exemplos da vanguarda do urbanismo mostram que ações que valorizam as pessoas podem trazer inúmeros benefícios para uma cidade
terça-feira, 29 de setembro de 2015
por Gabriel Ventura Braga
Área em Boston, nos Estados Unidos, destinada a pedestres (Foto: WikiCommons/CC0)
Área em Boston, nos Estados Unidos, destinada a pedestres (Foto: WikiCommons/CC0)
Nova Friburgo é uma cidade com uma frota registrada de mais de 110.000 veículos. Isto para uma população declarada de pouco mais de 182.000 habitantes—ainda que este número venha a ser questionado por diversas entidades. Este fenômeno não é único no país nem no mundo, é apenas o reflexo de uma política pública de urbanização que desde os anos 1950 inverteu a maneira de se pensar as cidades, que, até então, eram projetadas com foco nos pedestres, na vida comunitária, respeitando a beleza e os detalhes de suas construções. Depois, passou a priorizar o tráfego de veículos motorizados.

Cidades estão optando conscientemente pelo abandono do protagonismo do carro e devolvendo as ruas para quem importa: as pessoas
Pelo menos, esta é a percepção de Jan Gehl, um dos mais conceituados urbanistas do mundo. Segundo ele, as cidades eram projetadas para a locomoção a “5 km/h”, isto é, onde se podia caminhar, notar detalhes dos prédios, as belezas de jardins e apreciar a vida em uma praça no entorno do qual a vida girava.

Desde então, o advento dos veículos acabou por transformar esta relação com as cidades e inclusive propiciou a expansão dos centros urbanos, espalhando a urbanização para cada vez mais longe dos centros e “acelerando” a vida—a partir daí, as cidades passaram a ser apreciadas a “60 km/h” por cidadãos dentro de seus veículos. Tudo mudou de escala: os prédios foram se afastando, as comunidades foram se separando e as preocupações com o bem-estar das pessoas foram substituídas pela preocupação com o transporte destas pessoas, que estavam cada vez mais distantes dos centros urbanos.

Urbanismo moderno pede opção consciente

Em Nova Friburgo, esta mudança para a priorização de veículos é claramente vista a partir dos anos 70, com a construção do viaduto, e posteriormente com a abertura de  vias alternativas para escoar o grande volume de veículos na cidade, como a Via Expressa. Isto para não mencionar a evolução dos estacionamentos privados que tomaram o lugar de prédios de beleza e valor urbanístico-cultural inestimável para o município.

Mas o mundo dá voltas, e nos últimos 20 anos a tendência do urbanismo moderno é exatamente o contrário. Cada vez mais cidades estão optando conscientemente pelo abandono do protagonismo do carro e devolvendo as ruas para quem importa: as pessoas.

Há diversos exemplos pelo mundo, em todos os continentes, de cidades que estão se reinventando e transformando ruas somente para pedestres, abrindo caminhos para ciclovias e valorizando espaços públicos destinados ao convívio e harmonia entre as pessoas. Uma cidade bonita e agradável, afinal de contas, é aquela onde as pessoas tenham espaço para conviver, onde possam ver e ser vistas, onde sintam a vibração pujante da vida urbana.

Em Friburgo é visível a dificuldade em se adaptar aos novos tempos. Basta ver como fica o coração da cidade a cada domingo: deserta e sem calor humano. A Avenida Alberto Braune, em qualquer outro lugar do mundo, teria uma fileira de cafés e sorveterias, com artistas de rua, lojas abertas e diversos espaços de lazer para as famílias. Mas longe disto: está cada vez mais focada no trânsito de ônibus e carros, além de ter seus nobres espaços dominados por estacionamento de veículos.

Logicamente, a mudança não é fácil. Em todas as cidades onde as mudanças aconteceram houve muita resistência, fosse por falta de informação ou por medo de que as coisas piorassem. Mas, para os que se aventuraram em mudar, os resultados falam por si. Um exemplo recente e bastante revelador é a “pedestrianização” da Times Square, o icônico encontro de ruas no coração de Nova York. A mudança, que começou como um teste, acabou por se tornar permanente dado o sucesso que obteve. As lojas em seu entorno aumentaram seu movimento em mais de 70% (é isso mesmo, não foi erro de digitação), a população e os turistas começaram a desfrutar ali de seu tempo livre e agora veem como um sacrilégio a volta de carros para o local. Vale ressaltar que, com a movimentação de pedestres, os imóveis no entorno também se valorizaram, fortalecendo a economia.

A questão do transporte

A cidade do século 21 estimula tanto o transporte coletivo como o caminhar ou pedalar. Em entrevista ao jornal O Globo da última segunda-feira, 21, o ex-prefeito de Londres, Ken Livingstone, citou o fato de que sequer aprendeu a dirigir na vida. De fato, a grande maioria dos londrinos não possui carros próprios, nem sequer os deseja. A cidade é coberta por um maciço sistema de transporte que inclui metrôs, trens, VLTs, ônibus e até mesmo balsas. Isto influencia, e muito, na utilização dos transportes públicos preterindo o veículo particular, que acaba tendo um custo muito alto para sua pouca utilização.

Já no que tange às bicicletas, cidades como Amsterdã e Copenhagen, internacionalmente famosas pelo tráfego intenso das “magrelinhas”, ensinam que não basta a criação de ciclovias para que as pessoas abandonem seus veículos. Existe uma logística para facilitar o uso deste meio de transporte, como integração com outros modais. Felizmente, a introdução de ciclovias em Nova Friburgo já é uma tendência, ainda que efetivamente nada tenha saído do papel. Porém, a cidade tem chance de se reinventar, livrar-se do vício do carro e sonhar em reaver o antigo título de “cidade das bicicletas”, como era conhecida no passado.

Mas para tudo isto, é necessário um interesse conjunto da sociedade em mudar suas prioridades e não ter medo de mudanças que, como diversos estudos já comprovaram, melhoram o espaço urbano e a vida das pessoas.

Desbancando alguns argumentos contra o uso da bicicleta

Em um mundo em que cada vez mais o foco do transporte se volta para as pessoas, ainda vemos muitos problemas com a introdução de soluções criativas como as ciclovias para evitar problemas urbanos nas cidades. Exemplos:

1- Ciclistas não seguem as regras
Alguém realmente segue as regras de trânsito em Nova Friburgo? Na verdade, ciclistas acabam utilizando-se de calçadas e desrespeitando sinais, já que eles não são considerados parte do sistema de transporte e, portanto, não têm alternativas. Sinalização adequada e cuidados especiais trariam melhorias para os ciclistas, o que encorajaria o modal. Ciclovias seriam um grande avanço.

2 - Ruas são feitas para carros
Ruas foram desenvolvidas pensando em automóveis, seja pelo tamanho ou pela ainda visível preferência por vagas em espaços públicos. Qualquer solução para o trânsito nos últimos 50 anos foi pensada com base na expansão e alargamento de estradas. Em Nova Friburgo, o recente projeto da Prefeitura Municipal para tentar aumentar a fluidez de veículos no Paissandu, em grande parte, se baseou na expansão de alguns trechos da rotatória.
Com o alto custo social (e financeiro) do uso do carro, cidades que estão na vanguarda do pensamento sobre transporte estão cada vez mais focando no uso de ruas para pedestres e ciclistas. As ruas, afinal de contas, são das pessoas e não dos carros.

3 - Ciclovias são ruins para o comércio
Pelo contrário, as ciclovias costumam ser muitíssimo benéficas para os negócios. Um estudo feito no bairro de East Village, em Nova York, demonstrou que o valor médio gasto por ciclistas ($163 dólares) era a maior do que o de motoristas ($143 dólares). O resultado espelha estudos semelhantes feitos em áreas comercias de Dublin, Portland, Toronto, Auckland e Melbourne. Em São Francisco, nos EUA, foram quase três anos de debate sobre o impacto econômico da implantação de ciclovias. No fim, todos os estudos mostram o mesmo resultado: ciclistas consomem menos por transação, porém, por fazerem mais viagens e gastarem mais tempo nas áreas de comércio, acabam consumindo mais do que motoristas no médio e longo prazo.

Veja outros exemplos de cidades que estão se modificando

Copenhagen
Copehagen é um exemplo de uma cidade focada na importância da interação entre as pessoas e meios alternativos de transporte, principalmente a bicicleta. Estima-se que 50% da população ativa vá ao trabalho diariamente em suas bicicletas, mesmo quando neva. A valorização das bicicletas, que começou nos anos 60, colocando Copenhagen anos-luz à frente do resto do mundo, acabou por criar uma rede de ciclovias que cobre toda a cidade e tem mais de 322km de extensão. A cidade pensou inclusive na integração deste modal com outros: todos os táxis carregam duas bicicletas na traseira, os trens têm espaços para que o passageiro leve a sua bicicleta, tudo para facilitar a vida das pessoas e eliminar a necessidade do carro.

Londres
Além do transporte público de qualidade, Londres tomou medidas para limitar o número de veículos particulares no centro da cidade. A famosa “congestion charge”, tipo de pedágio introduzido em 2003, cobra cerca de R$ 60 por dia de motoristas que desejem circular. Já no primeiro dia de funcionamento, o trânsito de veículos caiu 25% e vem diminuindo progressivamente desde então.

Madri
Madri já vem fechando algumas ruas para veículos de passeio. Os moradores locais ainda podem circular, porém o plano é que, nos próximos cinco anos, cesse completamente o trânsito de veículos no centro da cidade. Além disto, nas zonas onde podem circular, veículos pagam preços de estacionamento de acordo com o nível de poluição produzido pelo veículo — isto é, quanto menos poluente, menor o valor do estacionamento.

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