Até quando?

sábado, 03 de fevereiro de 2018

De acordo com nosso planejamento original, esta coluna deveria dar continuidade à série que pretende mostrar a complexidade do posicionamento das rodas em um veículo, e a importância de que estejam sempre em conformidade com tais estudos para que a segurança ao rodar seja preservada. Todavia, a recente mobilização de nossa cidade em torno de uma ocorrência com vítimas sensibilizou a todos e mudou meus planos. Por sorte temos bastante tempo, e podemos continuar nossa série na próxima semana.

Pessoalmente, costumo ficar bastante incomodado com a repetição superficial dos dados de vítimas de nosso trânsito, por razões muito concretas. Basicamente, entendo que a tentativa de traduzir a magnitude desta tragédia através do emprego de estatísticas acaba por reduzir e banalizar o que efetivamente acontece. Dizer que a cada ano mais de 47 mil pessoas têm suas vidas interrompidas em nosso trânsito, e outras 400 mil ficam com alguma forma se sequela, é desrespeitoso já no momento em que o número é arredondado. Afinal, cada vida que se perde é uma história, uma consciência, uma família mutilada, saudades dolorosas que não passam. A rigor, tal estatística ultrapassa em muito nossa capacidade de compreensão e assimilação, a tal ponto que se arrisca a gerar efeito contrário ao pretendido: torpor em vez de consciência; conformismo em vez de mobilização.

Ao tratar pessoas como números, acabamos por esterilizar a catástrofe. Mais respeitoso e tocante talvez fosse reproduzir nomes e fotos, ou depoimentos dos que ficaram. Talvez assim conseguíssemos chacoalhar um pouco que fosse nossa sociedade, chamando atenção para a urgência de investirmos em segurança. Sim porque, até mesmo sob o aspecto financeiro – o menos importante de todos, neste contexto – investir em segurança também é um ótimo negócio.

Seguir de Nova Friburgo ao Rio de Janeiro, por exemplo, demanda de cada motorista dezenas de milhares de comandos precisos para que não se sofra um acidente. Já vimos aqui que a cada vez que um carro descreve uma curva ele está lutando contra tendências estabelecidas por leis da física, então imagine o leitor a quantos riscos se expõe o jovem que acabou de conseguir a habilitação e irá dirigir pelos próximos sessenta anos. Acrescente a esta receita a precariedade de nossas estradas e os riscos impostos pelos milhões de outros motoristas com os quais ele irá cruzar ao longo da vida, e a conclusão inevitável a que chegamos é a de que, por incrível que pareça, o resultado final ainda poderia ser pior do que de fato é.

É inadmissível, por exemplo, que o contrato de concessão de uma rodovia não reivindique dispositivos de contenção capazes de evitar a queda de um veículo leve numa ribanceira, caso, por qualquer motivo, não siga a trajetória que dele se espera. Da mesma forma, há que se ter câmeras distribuídas por pontos estratégicos a fim de tornar mais ágil a busca por eventuais desaparecidos que necessitem de atendimento emergencial. Aliás, tais aparatos de segurança deveriam constar de qualquer projeto de construção ou reforma de rodovias, sejam elas concedidas ou não.

Poderíamos também enfatizar a necessidade de comprometimento total por parte de qualquer motorista ou motociclista desde a primeira vez em que acelerar na vida, até a última vez em que usar os freios. Ou falar da necessidade de que tantos condutores profissionais recuperem urgentemente o respeito pelo trânsito e passem a dar bons exemplos, mas ainda assim estaríamos atacando apenas algumas arestas do problema.

Já passou da hora do Brasil encarar política com a devida seriedade, tornando menos tortuosos os caminhos da representatividade a fim de que sangue bom e novo possa nos livrar dos velhos vícios que impedem o planejamento de uma nação através de projetos que não poderão render dividendos eleitorais imediatos. Não se pode admitir, por exemplo, que país de tantas riquezas não disponha de malha ferroviária capaz de cubrir ao menos suas principais cidades, como já fomos capazes de fazer no passado.

O século XXI já está em curso, e suas tendências estão bem definidas. O transporte rodoviário não pode ser, sob qualquer justificativa, a base de deslocamento populacional e de cargas de um país inteiro. Esse é o verdadeiro absurdo. Daqui a muitos anos, quando a consciência da humanidade galgar níveis mais elevados, certamente será motivo de escândalo saber que, durante tantas décadas, e pelos motivos mais vis, convivemos com tão indizível e evitável dor coletiva, como se ela fosse normal ou inevitável.

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Márcio Madeira da Cunha

Sobre Rodas

O versátil jornalista Márcio Madeira, especialista em automobilismo, assina a coluna semanal com as melhores dicas e insights do mundo sobre as rodas

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