Carta para papai no céu

sábado, 10 de agosto de 2019

Pai, tenho sentido falta da sua voz. Temo por estar quase a esquecendo. Dizem que a voz é um dos primeiros esquecimentos que se tem, quando se perde alguém. Mesmo que tenha se tornado mais difícil a cada ano lembrar com exatidão o timbre, as pausas, a sonoridade quase arrastada, sei que ainda me fala... 

Eu te ouço em vários momentos do dia. Pelos seus programas favoritos da TV, quando alguém abre uma coca-cola (seu único vício), pelas chaves balançando no bolso, mas principalmente pelas estrelas que insistem em se sustentar nas noites escuras. É o cotidiano e o sobrenatural provando que relação de pai e filho é permanente. Saudade e nostalgia se misturando a esse presente que não se faz apenas evidente nas lembranças, mas nessas inexplicáveis conexões que a tecnologia jamais haverá de conseguir reproduzir. São os bytes de Deus.

Pai, não sei bem como está vendo daí de cima tudo que está acontecendo por aqui. Diria que são tempos de ódio gratuito, aspereza na indiferença que se impõe, a total falta de diálogo. Mas não fique estarrecido, faz parte da evolução humana, mesmo no retrocesso. Pode ser que seja melhor mesmo estar aí. No entanto, não sei se já corrigiu sua impaciência em querer meter o bedelho. É difícil para pessoas tão ativas não querer mudar as coisas tais como estão. Mas a vida segue, segue sempre.

Pai, os propósitos do futuro que sonhei estão cada vez mais próximos. Se se assustava com as loucuras do menino sonhador, posso dizer que sonhos distantes nunca estiveram tão perto de ser realidade. Espero que se orgulhe de mim. A força do trabalho aprendi com você. Na honestidade, imito você. Caráter é lição que não dá pra esquecer.

Pai, mais um netinho vem aí. Mais um sobrinho pra mim. Miguel está cada vez mais lindo e Tiago, cada vez mais parecido com você. Todos sentem saudades. Enquanto isso, você deve estar vendo a Glaucia ganhando a vida em Portugal. Terra que você sempre quis conhecer para se juntar ao seu pai. Não conheci o vovô, mas Glaucia diz que você adoraria o lugar onde ele nasceu e por onde passou. Sua menina é mais forte do que eu pensava. Acho que você sempre soube disso, mesmo quando hiper protetor dela.

Há poucos dias lembrei de dias felizes em família. Você assando bacalhau, nas raras vezes que substituía mamãe na cozinha. Você servindo à mesa composta por mamãe e meus irmãos. A simplicidade daqueles domingos é inimitável. Especialmente, quando ao cair da tarde, você inventava aquelas brincadeiras de quem pegaria o pastel premiado com pimenta. Fogo pela boca, por dinheiro no bolso.

O tempo passa depressa. A infância logo amadurece e a gente passa a compreender aquilo que não queria aprender. Ser menino pobre, nunca nos impediu a fartura. Porque você trabalhava única e exclusivamente para nos dar, a seu modo, o melhor. Mas o mais importante disso tudo foram os ensinamentos, mesmo que na sua dureza, de quem a vida causou tantas cicatrizes. Eu compreendo mais do que nunca. Ausência nos faz mais compreensivos.

É pai! Você era sujeito bravo, ainda que ao nos ver criados e independentes tenha se tornado até um rabugento mole e dócil. Você sabia das coisas. Você ainda sabe das coisas.

E aí está mais uma dessas datas que todos se reúnem com seus pais. Se fico triste? Não. Efemérides se espalham pelo calendário que vem todo ano. Fico com a força do cotidiano que lembro e desse sobrenatural que pode não me dar o direito de ouvir exatamente como era a sua voz, mas que garante que consiga me falar e eu possa te ouvir.

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Palavreando

Aos sábados, no Caderno Z, o jornalista Wanderson Nogueira explora a sua verve literária na coluna "Palavreando", onde fala de sentimentos e analisa o espírito e o comportamento humano.

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