Saint-Exupéry e a misteriosa irradiação da areia do deserto

segunda-feira, 03 de junho de 2019

Fui convidada pelos Jovens da Academia Friburguense de Letras a
conversar no dia 30 de junho deste ano sobre o Pequeno Príncipe, livro que
pertence à literatura universal, cujo autor Antoine Jean Baptiste Marie Roger
Foscolombe, Conde de Saint-Exupéry, ou melhor, Antoine de Saint-Exupéry,
tem o nome inscrito no Panthéon de Paris, ao lado dos imortais da literatura
francesa, como Alexandre Dumas e Victor Hugo.

Vou confessar algo que guardo no fundo dos meus bolsos: Saint-Exupéry
me encanta. Alguém poderia dizer que guardo este sentimento por que ele era
aviador, tal qual meu pai foi. Ou por que ele era um aventureiro da vida e de si
mesmo. Talvez por que escrevesse de um modo suave que agrada meus olhos
quando viajam sobre suas frases simples, que mostram a beleza da vida, da
natureza e das coisas. Reconheço que há uma íntima relação entre leitores e
autores, uma vez que eles se entrelaçam de diferentes formas; ele e eu nos
entrelaçamos porque não concordamos com o mundo do jeito que é, não
gostamos de guerras, de vaidades, nem de materialidades. Gostamos de
marcar encontros com as raposas para aprender o que é cativar e como fazê-
lo.

Cheguei a Saint-Exupéry através de um amigo chamado Renato que a
meu ver, há quase 25 anos, tinha a cor dos cabelos do Pequeno
Príncipe. Hoje ele deve ter cabelos grisalhos. Foi num relance que percebi
certa semelhança e, assim, me tornei escritora. Foi um momento mágico.
Eu havia lido o Pequeno Príncipe na infância, mas não tinha me
sensibilizado com o autor. Na verdade, gostei mais da ilustração do que da
história; era pequena para entender a unidade dos seres e das coisas. Para ser
sincera, meu entendimento a respeito das mensagens contidas no livro não ia
além das linhas, até porque ainda não conseguia ver a misteriosa irradiação da
areia. Estou querendo dizer que, naquela época, não era capaz de ler o
Pequeno Príncipe através de entrelinhas. Só consegui compreendê-lo, ainda e
apenas parcialmente, quando meu olhar para a vida se tornou um pouco mais
delicado. Não vou dizer adulto, uma vez que Saint-Exupéry, através da

narrativa do Pequeno Príncipe, não se cansou de considerar os adultos como
estranhos, surpreendentes, ridículos, além de perderem o tempo com
banalidades e gostarem demasiadamente de números. “Só as crianças sabem
o que querem. Gastam seu tempo com uma boneca de trapo e isso a torna tão
importante que, se alguém a toma, elas choram”.

Ele percebia a essência das pequenas coisas, por isso seu personagem
se chamava Pequeno Príncipe e morava num planeta pouco maior que ele e
precisava de um amigo. Ah, como ele sentia saudades de admirar o pôr do sol!
Lá ele poderia vê-lo muitas vezes num curto espaço de tempo. “O essencial é
invisível aos olhos.” Hoje quem admira todos os momentos em que o sol se
põe e preocupa-se com uma vaidosa rosa de poucos espinhos?

É preciso contextualizar o autor e sua obra. Saint-Exupéry foi um aviador
que participou da segunda guerra mundial, viu e sentiu as tragédias e as
tristezas decorrentes da falta de humanidade e da falta de sensibilidade,
motivadoras de um terrível conflito armado e causador da morte de milhares
pessoas, a maioria jovens. “E era verdade. Sempre gostei do deserto. A gente
se senta numa areia. Não se vê nada. Não se ouve nada. E, no entanto,
alguma coisa se irradia no silêncio. O que faz a beleza do deserto é que ele
esconde um poço de água em algum lugar...”

Ele estava ferido, sofrido e deprimido por estar exilado e afastado dos
seus amigos nos Estados Unidos, conforme escreve na dedicatória do livro.

“A Leon Werth

Peço perdão às crianças por dedicar este livro a uma
pessoa adulta. Tenho um sério motivo: essa pessoa é o
meu melhor amigo que tenho no mundo. E há outro
motivo: essa pessoa adulta é capaz de compreender
qualquer coisa, até livros para crianças. E um terceiro
motivo: essa pessoa vive na França, onde passa fome e
frio. Precisa de carinho. Se todos esses motivos não
forem suficientes, quero dedicar este livro à criança que
ele foi. Todas as pessoas adultas foram crianças um dia
(mas poucas se lembram disso). Corrijo minha
dedicatória:

A Leon Werth quando criança”.

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Tereza Malcher

Tereza Cristina Malcher Campitelli

Momentos Literários

Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis, presidente da Academia Friburguense de Letras e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.

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