Luíza, as formigas e a Páscoa de todos os dias

segunda-feira, 02 de abril de 2018

1º de abrill de 2018. Inusitadamente, o dia da Páscoa e da mentira.

Começo a escrever a coluna no final da tarde deste domingo incomum. Dia bonito, de céu azul e nuvens brancas. No sábado, passei horas refletindo sobre o que abordar nesta coluna e decidi tocar em algum assunto relacionado à Páscoa. Não quis falar sobre mentiras. Até que hoje de manhã, domingo, Luíza, filha de uma amiga e vizinha de quatro anos, me perguntou de onde vinham as formigas. Sua indagação foi motivada pela agitação de um formigueiro ao lado do qual passávamos. Caminhávamos de mãos dadas e, calmamente, respondi que elas se reproduziam e se renovavam sempre.

A ideia trouxe aos meus pensamentos a obra de Paulo Freire, que havia lido durante a universidade. Do livro Educação como Prática da Liberdade apreendi que para participar do mundo era preciso criar, recriar e decidir. Ou seja, renascemos todos os dias e refazemos a vida de forma diferente. Somos seres em movimento e em transformação; estamos sempre recomeçando.

Andando com a Luíza, fui passeando pelas ideias de Sartre e de Paulo Freire, entendendo, a cada passo, que vamos nos tornando pessoas diferentes ao longo do tempo. Depois, meus pensamentos se direcionaram para a passagem da Páscoa sob o ponto de vista da religião católica. Atinei para a metáfora da ressurreição: a cada desafio que vivemos, experimentamos a dor, os enfrentamentos e, posteriormente, o renascimento.  Sofremos vários partos existenciais durante a vida e, depois de cada um, amadurecemos; somos novas pessoas. Tornamo-nos diferentes.

Olhei para a Luíza, vestida de camiseta de malha e short de brim e, como num filme, revivi algumas mutações, pelas quais passei durante a vida. De menina à idosa, em sessenta e quatro anos, fui diferentes pessoas, como se tivesse tido vidas inéditas. Olhei para os meus pés, e refleti sobre as mudanças que aquela menina magrinha e saltitante, morena e sorridente, iria passar. Quem eu seria aos oitenta e quatro anos? E, ela, como estaria aos vinte e quatro? Será que ela e eu estaremos conversando sobre aquele momento absolutamente sincero?

Ah, se não fosse a literatura, como tais ideias iriam chegar a mim?

Reverenciei os autores existencialistas que decidiram pegar na caneta e transpor para o papel suas reflexões e suas inquietações diante da vida, carregada de acertos e desacertos. Arranhada por dores e dissabores. Pintada de esperanças. Vivemos no planeta das imposturas e imperfeições. Por isso, diariamente, precisamos de Páscoas e de seus ovos saborosos.

 

TAGS:
Tereza Malcher

Tereza Cristina Malcher Campitelli

Momentos Literários

Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis, presidente da Academia Friburguense de Letras e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.

A Direção do Jornal A Voz da Serra não é solidária, não se responsabiliza e nem endossa os conceitos e opiniões emitidas por seus colunistas em seções ou artigos assinados.