Laços de vida

quinta-feira, 09 de fevereiro de 2017
Foto de capa

A literatura mostra suas possibilidades quando um lugar é transformado num personagem e contado, revelado em seus segredos, manias e gente. Mas é difícil versá-lo assim; cidade não verbaliza, nem chora e faz. Cidade existe porque seu povo é quem fala, canta e sonha. Constrói. As histórias, ao bordarem a cidade através dos seus personagens, revelam uma simbiose criativa, mostram como ambos se acolhem e vivenciam os mesmos dias, contam seus direitos e avessos.

Um personagem, desta forma pensado, é a metáfora de um lugar, sempre enriquecido pelas tantas características dos habitantes. Não deixa de ser, a meu ver, uma sábia decisão do escritor que se propõe a falar de um espaço geográfico com o qual tem relações afetivas e culturais. Ele entrelaça os laços de vida. O que é bem diferente da descrição fundamentada em alguma admiração ou espanto, sem maiores comprometimentos familiares e emocionais.

A literatura entrelaçou Cantagalo com dona Maricotinha. Esta personagem é uma figura representativa do lugar, de um tempo não muito distante. Antiga e pequena cidade do interior do estado do Rio de Janeiro, Cantagalo guarda uma longa e bela história. Dona Maricotinha também. É interiorana, pessoa de roça, rotunda e dorme cedo. Sem modernidades e grandes conhecimentos. É pessoa do povo que foi contada por Anabelle Loivos, gente de lá. Que juntou num jeito poético,o modo de viver do cantagalense com a vida de uma professora que costurava, bem gostava de um dedo de prosa e de carnaval também.

Cantagalo é cidade de casas e vestidos bordados. É lugar de fazer bolos e presenteá-los aos amigos. De moças bonitas, que ficam na janela aos domingos, esperando moço elegante passar.

Dona Maricotinha, mulher piedosa, entendia que menina de barriga não precisava de língua comprida. Como boa costureira e pouco namoradeira, limpava os retratos dos santos da sala e fazia sapatinhos de crochê. Assim, deixava o tempo passar, rezando às seis a ave-maria, esquentando o café no bule, tomando chá na xícara de porcelana, vendo televisão e lendo revistas.

Nossa personagem, moça de boa educação, falava bonito e sem palavrão, era cheirosa e usava talco da Avon. Ia à missa aos domingos, acompanhava enterro e procissão. Mas ela tinha gosto mesmo por pudim de leite e paçoca, taioba e angu mole.

Cuidava da mãe, via seus sobrinhos nascerem, terem filhos e netos, não se esquecia das datas da família. Fazia roupas bonitas do casamento à primeira comunhão. Costurava bom gosto e amor.

Assim foram Cantagalo e dona Maricotinha há poucos anos atrás. Hoje, ainda não muito diferente, a cidade guarda outras moças prendadas. Ambos são o Brasil, nossa terra, nossa gente.

Salve a literatura!

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Tereza Malcher

Tereza Cristina Malcher Campitelli

Momentos Literários

Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis, presidente da Academia Friburguense de Letras e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.

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