Água fresca

segunda-feira, 05 de março de 2018

No meio da vida, a gente tem que se passar a limpo, fazer aquela faxina geral, conforme a letra da música com esse título de Patrícia Mellodi, da mesma forma que fazemos com uma gaveta em que temos que retirar as sujeiras para colocar roupa nova. Vivi uma experiência assim com uma amiga e tive a oportunidade de acompanhá-la, ou melhor, presenciá-la, do começo ao fim. Foi uma longa e pesada limpeza em sua história de vida que resultou no livro, A Voz do Tempo.

Tudo começou há quase quinze anos atrás, num final de tarde, quando terminamos a nossa oficina literária em que a Virgínia era a nossa mestra. Lenah tinha um carro azul e me ofereceu carona. Apesar de conhecê-la há pouco tempo, por ela sentia uma afinidade especial, como se convivêssemos há anos. Seus olhos brilhantes eram furta-cores, tinham uma mistura de verde e azul que eu gostava de admirar, talvez porque havia percebido que aquelas duas contas de cor indefinida tinham o que contar.  Quando o carro saiu da vaga, ela me disse com suavidade:

- Preciso escrever minha história para continuar a viver.

Como seu passado não a permitia mergulhar por inteiro nos seus dias, corajosamente decidiu conquistar a plenitude de viver o futuro a que teria direito; refazer o próprio parto e nascer de novo, como disse Paulo Freire.

A partir dali, aos poucos, ela foi me contanto a sua trágica história. Contando também para as minhas amigas de oficinas e mestra que, por isso e por outras interessantes questões, fizemos profunda amizade.

Lenah foi nos colocando a par do seu processo de escrita que envolvia um enredo familiar denso, marcado por paixão, desamor e crueldades. Minha amiga de olhos coloridos é uma sobrevivente; tem uma história de superação. Ela falava, sofria e escrevia. Contava passagens com dor na alma. Ela não tinha silêncios; tinha palavras. Palavras nunca vagas, sempre carregadas da vontade de guardar o passado num livro para viver a realidade do seu presente.

A primeira versão do livro foi escrita a partir de três pontos de vista: a do pai, a da mãe e dela. A da Lenah, dizíamos incansavelmente, deveria ter mais força de expressão, uma vez que suas palavras eram mais contundentes e fortes do que as do pai ou da mãe que, apesar de estarem compiladas de diários e escritos deixados por eles (já haviam falecidos), não tinham a força de superação.

Durante o processo de escrita, Lenah adoeceu gravemente e, como era de se esperar, foi vitoriosa; expurgou o passado com força nas sessões de quimioterapia. Hoje, como sempre foi, uma atenciosa mãe de três filhos, uma gostosa vovó e uma deliciosa amiga. Mas adquiriu a leveza das garças.

O escrever nos liberta. Escrevendo incessantemente, o inconsciente vem à tona repartido com fendas, com todos medos e escuros. Nossas palavras nos mostram nas entrelinhas o camaleão que somos e as cores que com que pintamos a vida, do encarnado ao azul, do preto ao branco. Nossos textos são a interseção entre o mundo e nós. Nossos pensamentos revelam, a cada frase, a efemeridade da nossa existência, enquanto suspiros que perpassam o apego e o desapego.

Quando nos tornamos passageiros escreventes, conseguimos degustar o copo de água fresca, tal qual um vinho da Toscana.

 

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Tereza Malcher

Tereza Cristina Malcher Campitelli

Momentos Literários

Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis, presidente da Academia Friburguense de Letras e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.

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