Você me conhece? O carnaval de fin de siècle

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

O carnaval de Nova Friburgo demarcava posições sociais e estabelecia territórios, fazendo emergir ao mesmo tempo e no mesmo espaço realidades distintas e comportamentos bem diversos. Enquanto a elite buscava o estilo europeizado, inspirada na commedia dell’arte, o carnaval de Friburgo ainda trazia resquícios da festa colonial, com seu retumbante zé-pereira, que consistia no batuque de bumbos atroadores, e os temerosos entrudos, que tanto chocavam os arautos da civilidade.

Conforme Mikhail Bakhtin, a abolição das relações hierárquicas na Idade Média e no Renascimento possuía uma significação muito especial. A festa oficial tendia a consagrar a estabilidade, a imutabilidade e a perenidade das regras que regiam o mundo: hierarquias, valores, normas, tabus religiosos, políticos e morais. A festa era o triunfo da verdade pré-fabricada, vitoriosa, dominante, que assumia a aparência de uma verdade eterna, imutável e peremptória.

Ao contrário da festa oficial, o carnaval era o triunfo de uma espécie de liberação temporária da verdade dominante e do regime vigente, a abolição provisória de todas as relações hierárquicas, privilégios, regras e tabus. Nas festas oficiais, as distinções hierárquicas destacavam-se intencionalmente, cada personagem se apresentava com as insígnias dos seus títulos, graus e funções e ocupava o lugar reservado para o seu nível. Tinham por finalidade a consagração da desigualdade, ao contrário do carnaval, em que todos eram iguais e onde reinava uma forma especial de contato livre e familiar entre os indivíduos normalmente separados na vida cotidiana pelas barreiras da sua condição, da sua fortuna e situação familiar.

Mas no carnaval oitocentista friburguense não ocorria de forma peremptória essa eliminação provisória das relações hierárquicas entre os indivíduos, como preconiza Bakhtin. Em vez de realizar os jogos de inversão, desafiando valores e hierarquias, na realidade reforçavam-se as regras sociais. A elite realizava seus bailes com absoluta restrição de convidados e até mesmo na rua os ritos festivos eram completamente gregários, em que as máscaras de seda se distanciavam das de arame ou papelão, reiterando, nesses dias consagrados ao Momo, os mesmos processos de hierarquia das classes sociais. O que mediava, porém, essa diferença era o entusiasmo que perpassava por todas as classes e etnias e cada um se divertia a seu modo.

Reinava, em Nova Friburgo, a patuscada carnavalesca, a alegria, a gargalhada, as momices, o rebuliço, o entusiasmo e o chiste. A cada ano crescia o número de carnavalescos e o povo avultava pelas ruas da cidade, sequioso de ver e ouvir a ideia e a pilhéria. Os mascarados faziam coisas estrepitosas e os mais espirituosos faziam rir com seus ditos chistosos. Alguns faziam uso da pilhéria fina, inocente e sem malícia; outros, mais endiabrados, utilizavam a pilhéria ferina.  Eram três dias de prazer, risos, galhofas, gritos, gargalhadas, alegria, rebuliços, cambalhotas, músicas, danças, pilhérias e o espírito a correr. Os mais jovens esperavam ansiosos pelo carnaval, contavam os dias e as horas para “folgar” nos três dias em que todos queriam fazer o seu pé de alferes.

Os rapazes preparavam-se ensaiando ditos espirituosos, enquanto as moças, só sorrisos, manejavam os leques com que iriam corresponder aos heróis da folia, confusas ao tentar identificar por detrás das máscaras os seus favoritos. Confetes, serpentinas, pétalas de rosas, versos e a pilhéria fina e delicada estavam “na ponta” nos três dias consagrados ao Rei Momo. Renhidas batalhas de confetes confrontavam senhoras e cavalheiros, que se atiravam encarnecidamente a luta, terminando muitas vezes em batalha de água.

Dominós formados por rapazes e gentis senhoritas percorriam a cidade, propalando suas pilhérias espirituosas e provocando gargalhadas no povo, que esperava ansioso por eles. Os rapazes costumavam entrar também nas residências, nos Cafés, no meeting da tradicional Charutaria Guarany, vestidos de dançarina, dominós, mademoiselle fin de siècle, em que exibiam a pilhéria engraçada e bem preparadas críticas que provocavam deliciosas gargalhadas. Os populares tentavam a todo custo descobrir quem estava por detrás das máscaras, mas manter o anonimato era crucial na brincadeira. Manter-se durante todo o carnaval sem que se descobrisse sua identidade era o grande desafio dos máscaras e o entusiasmo da festa. Usando o artifício da voz em falsete e procurando esconder as características que pudessem identificá-lo, o folião friburguense se rejubilava se permanecesse no anonimato durante os festejos.

E os mascarados repetiam constantemente o velho e conhecido estribilho em Nova Friburgo: “Você me conhece?” (Trecho extraído de meu livro, O Cotidiano de Nova Friburgo no final do século, práticas e representações sociais).

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    Alunos do Samba. Uma das imagens mais antigas do carnaval de Nova Friburgo

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    Rancho Carnavalesco Mimosa Violeta

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    Prazer da Mocidade, bloco da Campesina Friburguense

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Janaína Botelho

Janaína Botelho

História e Memória

A professora e autora Janaína Botelho assina História e Memória de Nova Friburgo, todas as quintas, onde divide com os leitores de AVS os resultados de sua intensa pesquisa sobre os costumes e comportamentos da cidade e região desde o século XVIII.

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