Uma rápida visita

quarta-feira, 09 de agosto de 2017

O consultório tem duas cadeiras: uma é a do médico e a outra está quebrada

Bons tempos aqueles em que você ia visitar uns amigos e ficava na casa deles uma semana, um mês, um ano, anos a fio! Atualmente ninguém se visita mais, quando muito se dá uma rápida passada por lá. Mas houve uma época em que, se o visitante se retirasse com menos de três ou quatro horas, dizia-se que ele havia feito “uma visita de médico”, ou seja, ligeirinha. Porque os médicos não só visitavam os pacientes como tinham tempo para um café com broa e dois dedos de prosa sobre a vida ou, no pior dos casos, sobre a morte.

Hoje, mesmo nos melhores planos de saúde, quando você se senta para contar de seus males, o médico já está se levantando para dizer adeus. Na rede pública, o doente nem se senta, porque o consultório tem duas cadeiras: uma é a do médico e a outra está quebrada. E isso depois de um dos nossos amados presidentes ter dito que a saúde pública no Brasil era de fazer inveja ao Primeiro Mundo. Bom, talvez ao mencionar o “Primeiro Mundo”, ele estivesse pensando no mundo primeiro, o então chamado Paraíso, onde não havia doença e, portanto, ninguém precisava de médico.

E para quem achou que eu estou exagerando ao falar em visitas que duravam anos, vou contar um caso verídico, real e verdadeiro, com perdão do pleonasmo. O caso é o seguinte: meus avós maternos vieram da Itália e eram duplamente analfabetos, tanto em italiano quanto em português. Mas eram gente boa, e aí vocês se perguntarão: “E como é que duas gerações depois deu no autor disso que estamos lendo?” Bem, tudo no mundo se transforma, e nem sempre para melhor.

Mas o que vocês realmente estão fazendo é atrapalhar a narrativa, e depois ainda vão dizer que eu é que estou enrolando. Apresso-me, portanto, em contar o caso. Os avós acima citados foram morar na roça, onde ganhavam a vida cavoucando a terra e fazendo dela surgir repolho, aipim e outras maravilhas deste país onde “em se plantando tudo dá”. Depois vieram os filhos, para ser mais exato, uma penca de filhas, uma das quais veio a ser a mãe deste cronista que vos fala.

Filhas, vocês sabem, nunca estão contentes, e tanto fizeram que os velhos não tiveram outro jeito senão vir para a cidade grande, isso é, Nova Friburgo, que naquele então já devia estar transbordando com mais de cinco mil habitantes.  Anos aqui moravam, na santa paz de Deus, quando lhes bate à porta uma comadre que haviam deixado na roça. A qual, valendo-se de uma lei não escrita, mas santamente respeitada, pediu hospedagem por uns dias, enquanto procurava um médico que lhe tirasse das costas o peso de suas doenças.

Vejam que isso tem tanto tempo que até as leis não escritas eram obedecidas. Coisa inacreditável, quando diariamente se constata que agora nem mesmo as mais bem escritas são levadas a sério. No Brasil, lei é como resfriado: às vezes pega, às vezes, não. Geralmente pega em quem é pobre, não pode pagar advogado e, por isso, tem baixa imunidade. Então, obedecendo aos códigos de honra vigentes, meus avós abriram a porta para a comadre Quintiliana que, aberta a porta, considerou aberta a casa toda e nela se instalou por, acreditem, nove anos.

Parece que, lá pelo sétimo ano da visita, meu avô achou que a comadre já morava com eles há um bom tempo e que, uma vez que estava curada desde os primeiros dias da visita, bem podia retornar para sua terra. Mas, a essas alturas, Dona Quintiliana já tinha seu lugar na mesa, o guarda-roupa arrumado, cama própria. A visita durou ainda algum tempo, até que o afilhado, sentindo saudades da mãe, veio buscá-la. Não sem que minha avó insistisse para que ambos ficassem por mais uns dias, afinal, pra que tanta pressa?

Sim, pra que tanta pressa? Melhor relaxar, ouvindo “Verdade Chinesa”, na voz do excelente Emílio Santiago: “Senta, se acomoda/À vontade, tá em casa/Toma um copo, dá um tempo/Que a tristeza vai passar/Deixa pra amanhã/Tem muito tempo/O que vale é o sentimento/E o amor que a gente tem no coração”.

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Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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