Uma paixão

terça-feira, 20 de setembro de 2016

Já rapazinho, curado dessas primeiras e infrutíferas paixões, vim a saber da triste verdade

Eu nunca tinha visto coisa tão linda em toda a minha longa vida, e eu já estava com 11 anos. Ela era mais idosa, devia beirar os 13. Alguns dirão que a diferença era pequena, mas façam as contas: ela era quase 20% mais velha do que eu. Também não foi a minha primeira paixão, eu já tinha me apaixonado pela professora da 3ª série e, nesse caso, com algum sentimento de culpa, visto que a moça era noiva, e noivado naquela época era coisa séria.

Sem coragem para declarar-me, temeroso de que os dois anos de diferença criassem um abismo entre nós, limitava-me a vigiá-la, como na letra do samba: “Quando a vejo passar, vaidosa sem me ligar, indo pra repartição...” No caso, ela ia à missa, à escola, à casa da avó, roteiro dos meus olhares apaixonados. Amor platônico, como nos ensina o Aurélio: “alheio a interesses ou gozos materiais; ideal, casto”. Não que eu fosse um anjinho, mas, naqueles tempos, criança era criança, não esse adulto precocemente sexualizado de agora. Enfim, amávamos a beleza pelo prazer da contemplação, sem querer possuí-la. Bons tempos!

Meus ouvidos se apuravam quando ouviam chamarem por Lalá, som que, para mim, só se comparava em beleza ao de um canário que o quitandeiro do bairro trazia preso em frente à porta do seu estabelecimento. Um dia, com grande desapontamento, fiquei sabendo que seu verdadeiro nome era Eugênia. De como Eugênia resultou em Lalá, eis aí um mistério que talvez só os mais doutos etimologistas hão de saber explicar.

Tanto tardou a minha covardia em declarar-me, que um dia Lalá não apareceu. Também não apareceu no dia seguinte, nem no terceiro. Em razão disso, perderam a graça as maiores alegrias da minha vida, tais como jogar pelada, colecionar bolas de gude ou faltar à aula. Uma eternidade durou aquela ausência e, no sétimo dia, quando Deus descansou, eu resolvi agir. Meio como quem não quer nada, e pergunta sem ter nenhum interesse no assunto, assim como se perguntasse por que a lua é redonda e não quadrada, perguntei a minha mãe por onde andava “a filha da vizinha”.

Mãe é mãe. Coração de mãe não se engana. Mãe é só uma, mais de uma ninguém aguenta. Pelo visto, a minha já tinha lido em meus olhos (ou em algum de meus cadernos de escola) o segredo do secreto amor que eu nutria por Lalá. Foi provavelmente essa a razão pela qual ela rodeou tanto o assunto, igualzinho quando passava Vick Vaporub no peito dos filhos para curar resfriado. Mas, no fim da enrolação, eu tinha entendido tudo: a família de Lalá havia se mudado para outra cidade, o caminhão saindo de madrugada, não sei se para não deixar à mostra os trastes que formavam a mobília, ou se para evitar que eu me desesperasse e saísse correndo atrás do caminhão, feito cena de filme italiano.

Pensei em morrer, mas não levei a ideia adiante, tanto que estou aqui escrevendo sobre Lalá. Mas muito me perguntei como podia daquele nobre sentimento provir tamanha infelicidade, nisso plagiando, sem saber, o grande Camões: ‘Mas como causar pode seu favor /Nos corações humanos amizade;/Se tão contrário a si é o mesmo amor?”

Tive saudades de Lalá; depois, ressentimento; depois, vaga lembrança; por fim, total esquecimento. Tão inconstante é o amor dos homens que, menos de um mês depois do sumiço de Lalá, lá estava eu outra vez enamorado, agora por uma artista, a qual não saía da tela dos cinemas e da minha cabeça, onde, aliás, contracenava comigo nos filmes mais românticos que Hollywood já produziu.

Já rapazinho, curado dessas primeiras e infrutíferas paixões, vim a saber da triste verdade. Lalá era muito doente, e seus pais haviam se mudado para outra cidade, na esperança de que o clima de terras mais quentes a curasse.

O triste da história é que foi vã a esperança deles. Pelo que fiquei sabendo, Lalá não passou dos 16 anos, o que por um lado muito me entristeceu, mas por outro até me consolou: afinal, eu havia escapado de ficar viúvo ainda criança.      

Não, realmente não se pode confiar no amor masculino. Ou em qualquer outro amor, sei lá!

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Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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