Transeuntes - Parte 1

terça-feira, 23 de maio de 2017

Parada, espera. Um olho de desafio, outro, de desamparo.

A moça está a três ou quatro passos à minha frente. O rapaz, dois ou três passos à frente dela. Tão jovem, tão magrinha, é com esforço que carrega o bebê no colo. Ele, um pouco mais velho e um tantinho mais encorpado, vai levando pela mão uma menina de uns três anos. Com altivez, guia a família calçada afora, caminhando com a firmeza de que a esposa carece (porque não há dúvida de que se trata de um casal). A jovem lhe dirige palavras chorosas, que chegam a mim trituradas pela fala de outros pedestres e o barulho do trânsito. Talvez ela apenas peça que ele ande mais devagar, a criança pesa mil quilos nos fracos braços maternos.

 Ele, no entanto, nada responde. Às vezes vira a cabeça para trás, como um cacique a se certificar de que seus guerreiros o seguem. Quando chegam ao semáforo, ele vira à direita e prossegue pela calçada. A indiazinha urbana para, com a evidente intenção de cruzar a pista e seguir em outra direção. Mas o Cacique Cabeça Erguida toca em frente. Ela estanca no meio dos outros pedestres, feito bicho que não sabe se vai receber um carinho ou um pontapé do seu dono.

Parada, espera. Um olho de desafio, outro, de desamparo. Quem faria alguma coisa, quem saberia o que fazer, se ela de repente começasse a chorar nesse cruzamento de vidas e de carros? Em lágrimas de marido e mulher ninguém mete a colher. Pobre mãe, mãe pobre, dois filhos e aquele homem que talvez a tenha amado, que talvez ainda a ame, mas nesse momento parece considerá-la apenas um dos três fardos que lhe cabe arrastar pela vida.

Sinto pena de ambos, sobretudo dela. Pena inútil, solidariedade vã. Pode ser que nem seja solidariedade ou pena, mas simplesmente a curiosidade de ver quem, afinal, sairá vencedor nesse duelo de vontades desiguais. Ele voltará, e juntos atravessarão a pista, ou ela dará adeus à fraca tentativa de ter vontade própria e poder de decisão nessa pequena e humilde tribo?

O sinal fica verde. De súbito misturado com o povo que vai comigo no embalo, perco o casal de vista. E logo um conhecido me acena, um carro buzina, alguém esbarra em mim, e já não penso mais no jovem casal, para sempre perdido de vista, para sempre anônimo, para sempre pura e simplesmente transformado em um punhado de palavras vazias sobre uma folha de papel. 

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Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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